O argumento ontológico, primeiramente apresentado por Anselmo de Cantuária (ou Santo Anselmo, para os católicos) no longínquo ano de 1077, é o melhor argumento que conheço em favor da existência de Deus. Mas será que ele prova mesmo a Sua existência? O argumento baseia-se na ideia de que todos nós, mesmo aqueles que acreditam que Deus não existe, temos, em nosso entendimento, um conceito de Deus. Afinal, mesmo achando um equívoco o que um crente fala sobre Deus, um ateu entende as palavras do crente, entende o que ele está dizendo. O argumento ontológico aponta que este entendimento do conceito de Deus que todos temos, independentemente de nossas crenças, é suficiente para garantir a Sua existência. O argumento baseia-se na aceitação da definição de Deus como “o ser mais perfeito concebível” e também na ideia de que a existência é uma destas "perfeições". Poderíamos então apresentá-lo de um modo bastante direto assim:
(Premissa 1): Deus é o ser mais perfeito concebível. (Premissa 2): A existência é uma perfeição. -------------------------------------------------------------------------- (Conclusão): Deus existe. Repare que as premissas (1) e (2) são aparentemente aceitáveis mesmo para ateus. Eu não preciso acreditar em Deus para entender e aceitar a premissa (1) como uma boa definição para Ele. Também não preciso acreditar em Deus para aceitar a premissa (2). Agnósticos e ateus poderiam aceitá-las com base apenas em um acordo sobre o significado das palavras. Mas se Deus é o ser mais perfeito concebível, então Ele não pode não existir, pois caso Ele não existisse, seria possível conceber um ser que fosse igualzinho a Ele, com todas as outras perfeições, mas que, além disso, existisse. Como, de acordo com a premissa (2), a existência é uma perfeição, este outro ser seria então mais perfeito do que Deus, o que é contraditório com a premissa (1), que afirma que Deus é o ser mais perfeito concebível. Portanto, a afirmação da não existência de Deus é contraditória com a aceitação de sua definição como o ser mais perfeito concebível. Logo, como todos aceitamos esta definição, somos obrigados a concluir que Deus existe. O argumento ontológico é, realmente, muito convincente. Mas apesar de sua primeira premissa ser aparentemente inofensiva e aceitável mesmo para agnósticos e ateus, e de definir bem o que normalmente pensamos sobre o Deus monoteísta judaico-muçulmano-cristão, vou tentar mostrar que há sim um bom motivo para rejeitá-la. Será mesmo concebível o ser mais perfeito concebível? Vou fazer uma pergunta diferente, mas muito parecida. Você acha que o maior número natural é concebível? Quando eu falo no maior número natural você entende minhas palavras. Elas não são completamente assignificativas. Mas conhecemos os números naturais suficientemente bem para saber não apenas que não existe o maior número natural, sabemos também que um número natural assim definido não é nem concebível! Faz parte da essência de qualquer número natural ser vizinho de um número natural uma unidade maior do que ele. O que seria, afinal, para um número, ser concebível mas não existir? O que é concebível deveria ser logicamente possível, mas eu não acredito que haja matemática modal, embora já tenha ouvido falar dela, entre filósofos, não entre matemáticos. A matemática é necessária. Em matemática não há diferença entre o possível, o necessário e o real. E se só o possível pode ser concebido, então tudo o que é concebível em matemática, além de possível, ocorre, ou seja, é também real e, inclusive, necessário. Mas voltemos a Deus. Quando eu defino Deus como o ser mais perfeito concebível, você não precisa acreditar na existência de Deus para entender minhas palavras. Elas fazem algum sentido, não são completamente assignificativas. Então parece bastante razoável admitir que este sentido é garantia suficiente para que tal ser seja concebível. Mas pode ser que esta admissão nos comprometa de um modo mais forte do que gostaríamos! Eu acho que aqui que mora uma petição de princípio escondida. Afinal Deus, assim como as entidades matemáticas, é um ser necessário. Pelo menos de acordo com as duas premissas do argumento ontológico, Ele é. Se Ele é o ser mais perfeito concebível e se a existência é uma perfeição, Ele existe e não poderia não existir. Se Ele existisse, mas pudesse não ter existido, Ele seria menos perfeito, no que concerne a existência, do que o número 7, por exemplo, que existe e não poderia não existir. Mas se Ele é menos perfeito que o número 7 em algum aspecto, Ele não é o ser mais perfeito concebível, afinal eu poderia conceber um ser idêntico a Ele em tudo e que ainda fosse necessário, que existisse e não pudesse não existir. Então, aceitar as aparentemente inofensivas premissas do argumento ontológico envolve uma certa petição de princípio simplesmente porque Deus é necessário, e para entidades necessárias a capacidade de ser concebível e a existência (realidade) são a mesma coisa. Esta petição de princípio não é uma falácia lógica formal. O argumento continua logicamente válido, mas ele contém uma falácia argumentativa, porque exigir de um ser necessário a capacidade de ser concebível, que é o que se faz nas premissas, é a mesma coisa que exigir a sua existência, que é a conclusão do argumento. Há, então, uma circularidade viciosa, porque estamos exigindo nas premissas aquilo que se quer demonstrar na conclusão. Mas neste ponto, um defensor do argumento poderia reagir e me dizer: “bem, eu não me importo com isso. Se a concepção de Deus como o ser mais perfeito concebível é idêntica à admissão de sua existência e se, além disso, todos nós, crentes e ateus, podemos assim concebê-lo, isto comprova de modo mais forte ainda que Deus existe.” O defensor do argumento poderia ainda continuar: “parece que o que você está querendo dizer é que ou aceitamos que Deus existe, com base na concepção Dele como o ser mais perfeito concebível, ou então admitimos que Deus assim definido é inconcebível. Mas se há bons motivos para que “o maior número natural” ou o “maior número ordinal” sejam inconcebíveis, qual é a razão que você me daria para que Deus seja inconcebível? Não há! Ao invés de provar que Deus é inconcebível, o argumento ontológico continua provando a Sua existência, justamente porque podemos assim concebê-Lo.” De fato, o ônus de argumentar que Deus é inconcebível, é meu. E eu argumentaria assim: Deus, definido como o ser mais perfeito concebível, é tão inconcebível quanto é inconcebível o maior número natural, ou o maior número ordinal, ou mesmo o maior número real menor do que um. Não há motivos para que eu não possa conceber as perfeições, ou pelo menos algumas delas, como ilimitadas (sem máximo). Suponha que tamanho seja uma “perfeição”. Então não há um tamanho máximo concebível. A qualquer tamanho concebível, posso conceber, a partir dele, um tamanho maior. Bondade, prudência, poder, tamanho, inteligência, existência,… é muito pouco plausível que todas as “perfeições” tenham que ser limitadas. Há “perfeições”, inclusive, que seria contraditório considerá-las limitadas. Pense na resposta a esta pergunta: Seria Deus poderoso o suficiente para criar uma pedra tão pesada que nem Ele mesmo pudesse carregar? Tanto a resposta afirmativa quanto a negativa mostram que Deus não é o ser mais poderoso concebível. Se Ele não consegue criar a pedra, há algo que Ele não consegue fazer, e portanto é concebível alguém mais poderoso que Ele. E se Ele consegue criar a pedra, há algo que Ele não consegue carregar, e portanto é concebível alguém mais poderoso que Ele. Portanto, não é concebível que haja “um ser mais perfeito concebível”, simplesmente porque podemos conceber perfeições ilimitadas, tanto quanto são ilimitados (não têm máximo) os números naturais ou os ordinais ou até mesmo os reais menores do que um. A força do argumento ontológico está em sua aparente cogência, pois a conclusão parece dizer bem mais do que as premissas, mas a circularidade viciosa do argumento ontológico está no fato de que esta cogência é apenas aparente, pois capacidade de ser concebível e realidade (existência) são a mesma coisa para seres necessários. Eu não tenho certeza se Deus existe ou não. Mas eu tenho certeza que qualquer argumento que alguém alegue provar quer seja a existência, quer seja a não existência de Deus terá alguma premissa controversa, inaceitável, assim como é inaceitável a aparentemente inofensiva definição de Deus como o ser mais perfeito concebível.
2 Comments
15/5/2021 15:27:14
Olá, amigo. Eu li todo esse argumento, e considerei-o extremamente plausível e, não só isso, paralelamente equivalente ao argumento cosmológico que utilizo no primeiro capítulo de minha teoria filosófica pessoal.
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15/5/2021 15:27:44
Olá, amigo. Eu li todo esse argumento, e considerei-o extremamente plausível e, não só isso, paralelamente equivalente ao argumento cosmológico que utilizo no primeiro capítulo de minha teoria filosófica pessoal.
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