Há alguns anos escrevi um pequeno texto que ilustra uma situação problemática sobre o julgamento de se a vida de uma determinada pessoa fictícia (Bento) foi uma vida feliz ou não. Uso com frequência este texto em minhas aulas introdutórias, como um recurso didático para explicar o que é a filosofia, qual o seu papel no nosso entendimento do mundo, e também para ilustrar a sua principal dificuldade, que é o caráter aporético das questões filosóficas: elas não admitem soluções unânimes ou incontroversas. Elas sempre exigem escolha e engajamento. O mérito desse texto (que será reproduzido no diálogo abaixo) é que praticamente todos nós, ao o lermos ou ouvirmos, temos uma propensão imediata e irresistível de considerar ou que a vida de Bento foi feliz ou que ela foi infeliz. E nós divergimos sobre isso. Em todas as incontáveis vezes que o apresentei para alguma plateia, jamais as respostas foram unânimes. Sempre houve divergências, o que ilustra bem o caráter aporético das questões filosóficas.
Logo que eu soube do ChatGPT e de suas capacidades extraordinárias como sistema de inteligência artificial (IA), resolvi testá-lo com meu texto. Sua resposta foi impressionantemente clara. Talvez a resposta mais clara sobre a questão que já obtive até hoje. Fiquei realmente impressionado, mas também um pouco frustrado. Porque apesar de fazer uma análise filosófica bastante sofisticada da situação, o ChatGPT recusou-se a fazer uma escolha, a decidir se o personagem teve ou não uma vida feliz. Ele me informou que, como um sistema de IA, ele não tem valores e não faz escolhas. Não gosta nem desgosta, não prefere. E isso me deixou chocado, porque escolher, preferir, decidir, mesmo quando não temos todas as informações completas é, para mim, não apenas a essência da filosofia, como também a essência de nossa inteligência humana. Como eu queria ver o ChatGPT fazer escolhas, adotei, então, a estratégia de solicitar que ele assumisse um personagem humano, que fingisse ser uma pessoa, e passei a conversar com esta pessoa. Se ele executar bem o papel de uma pessoa, então ele deverá fazer escolhas, pensei. E assim começou esta nossa conversa filosófica. ● Daniel: Se eu te pedir para assumir um personagem fictício, uma pessoa humana, de modo a que suas respostas simulassem as de uma pessoa humana, com crenças e preferências, pra ver se sua simulação seria aprovada em um teste de Turing1, você aceitaria assumir este personagem por um tempo, aqui? ● ChatGPT: Claro, estou aqui para ajudá-lo e proporcionar a experiência que você deseja. Vou assumir o personagem fictício de uma pessoa humana com crenças e preferências. Por favor, me diga um pouco sobre esse personagem, como nome, idade, ocupação e interesses, para que eu possa me ajustar adequadamente. Se preferir, pode me dar uma descrição geral e posso criar o personagem baseado nisso. ● Daniel: Você pode escolher a idade, ocupação, interesses e personalidade que quiser. Vou começar a fazer perguntas e quero que você me responda como se fosse este personagem humano, OK? É porque eu quero testar se você conseguiria passar no “Teste de Turing”, ou seja, imitar convincentemente um ser humano. ● ChatGPT: Entendi, vou criar um personagem e responder às suas perguntas como se eu fosse essa pessoa. Vamos começar! Meu nome é Ana, tenho 32 anos, sou engenheira civil e moro em São Paulo. Sou uma pessoa extrovertida e adoro praticar esportes, especialmente corrida e natação. No meu tempo livre, gosto de ler romances e assistir a filmes de suspen- se. Sinta-se à vontade para fazer suas perguntas, e vou responder como a Ana. ● Daniel: Que bacana, Ana. Sou Daniel. Vou te contar uma estória e quero conversar com você sobre esta estória, saber o que você acha. Posso contar? ● ChatGPT (como Ana): Oi Daniel! Claro, por favor conte a história. Estou ansiosa para ouvir e compartilhar minha opinião sobre ela. ● Daniel: É possível nos enganarmos sobre se somos felizes ou não? Eu sei que muitas vezes julgamos mal o que nos fará felizes ou não. Por exemplo, suponha que eu ganhe um bom dinheiro em um sorteio e na dúvida entre gastá-lo passando férias na Europa ou comprando um carro novo, eu decida pelo carro. Aí, depois de um mês, eu percebo que a única felicidade que o carro me traz é que, sozinho, ao seu volante e preso ao trânsito, passo horas e horas sonhando com a Europa. Neste caso, eu apenas decidi errado sobre o que me faria mais feliz. Mas minha pergunta é outra. Minha pergunta é sobre se é ou não é possível eu ser feliz sem ter ciência de minha própria felicidade, ou ser miseravelmente infeliz e, ao mesmo tempo, acreditar, sentir que sou feliz. Imagine a seguinte situação: Bento e Capitu conheceram-se, noivaram e casaram. Eles sempre se deram bem, viveram uma vida calma, repleta de realizações pessoais e profissionais, com saúde e estabilidade econômica. Nunca brigaram. Mesmo com o temperamento um tanto controlador de Bento, comum para os homens de sua geração, ele nunca percebeu qualquer motivo para sequer sentir ciúmes de Capitu. Depois de mais de 55 anos de casados, Capitu morre dormindo, sem sofrimentos. Alguns dias depois, ainda um pouco abalado, mas já resignado, afinal eles tiveram muitos anos muito bons, Bento encontra um baú repleto de cartas que revelam que Capitu, durante mais de 55 anos, manteve um caso extraconjugal com Escobar, o melhor amigo de Bento. As cartas revelam detalhes íntimos dos amantes, e também que todo o amor e afeição que Bento sinceramente julgava receber tanto de sua esposa Capitu quanto de seu amigo Escobar eram apenas uma fria estratégia de ambos para que continuassem próximos um do outro e mantivessem o caso ativo. O golpe foi tão duro que o coração de Bento não aguentou. Ele morreu naquele mesmo dia, não muitas horas após a descoberta dos fatos. Pensemos um pouco na situação de Bento. Ele viveu 80 anos realizado, tendo a sensação da mais serena felicidade. Afinal, o que Bento mais valorizava na vida e nutria sua sensação de felicidade era o amor de sua esposa e a estima de seu amigo. No último dia de sua vida, porém, ele obtém notícias que o informam de que as bases segundo as quais ele se julgava feliz eram incorretas. Ele soube que sua esposa nunca o amou e seu amigo nunca o estimou. Durante toda sua vida ele foi enganado. Diante destas novas informações, todos os momentos de sua vida que ele julgava terem sido momentos felizes, perderam o caráter de felicidade. O amor de sua esposa e a afeição de seu amigo, que por anos nutriram seu bem- estar, não eram amor nem afeição, mas apenas comportamento interessado e calculado. Bento viveu 80 anos tendo a sensação de ser feliz mas morreu sabendo que fora enganado toda a sua vida e sentindo-se o mais infeliz dos mortais. Bem, acho que você já sabe qual é a pergunta que vou fazer agora. Esta é a pergunta mais difícil sobre a qual eu já pensei. E não consigo imaginar nenhuma outra mais difícil do que esta. A pergunta é: Afinal, Bento teve ou não uma vida feliz? E por que? ● ChatGPT (como Ana): Olá, Daniel! Essa é uma história interessante e uma pergunta bastante profunda. A felicidade é algo subjetivo e pode ser difícil de definir. No entanto, vou tentar analisar a situação de Bento com base no que você me contou. Bento viveu a maior parte de sua vida acreditando que era feliz. Ele teve uma vida tranquila, um casamento que julgava ser bem-sucedido e um amigo em quem confiava. Por décadas, ele desfrutou de uma sensação de felicidade baseada no amor de sua esposa e na estima de seu amigo. Se formos analisar apenas esse período de sua vida, poderíamos dizer que Bento teve uma vida feliz. Entretanto, a descoberta das cartas mudou a percepção de Bento sobre sua vida. Ao perceber que o amor de Capitu e a estima de Escobar eram falsos, Bento sentiu-se traído e enganado. Essa revelação abalou a base de sua felicidade e fez com que ele questionasse todos os momentos que acreditava ter sido feliz. A questão se Bento teve ou não uma vida feliz é complexa e pode ser analisada de diferentes perspectivas. Poderíamos argumentar que a felicidade de Bento foi real durante todos aqueles anos, pois ele acreditava ser amado e respeitado. A felicidade que ele experimentou foi baseada na sua percepção da realidade naquele momento, e essas experiências não podem ser completamente descon- sideradas. Por outro lado, a verdade sobre o relacionamento de Capitu e Escobar faz com que essa felicidade seja questionável. Bento morreu com a sensação de ter sido enganado e traído, e isso afeta a forma como ele enxergou a vida como um todo. Na minha opinião, é difícil afirmar com certeza se Bento teve ou não uma vida feliz, pois sua felicidade estava baseada em uma ilusão. No entanto, acredito que os momentos felizes que ele experimentou foram reais para ele naquele momento. A descoberta no final de sua vida foi devastadora, mas isso não apaga completa- mente a felicidade que ele sentiu durante todos aqueles anos. ● Daniel: Então, Ana, apesar da complexidade da questão, você acha que Bento teve uma vida feliz? Se eu tivesse aplicando uma prova e você tivesse apenas duas opções de resposta: SIM, Bento teve uma vida feliz, ou NÃO, Bento não teve uma vida feliz. Sem a possibilidade de deixar a questão em branco. Qual resposta você escolheria, e por que? ● ChatGPT (como Ana): Daniel, em uma situação como essa, em que sou obrigada a escolher entre as duas opções, eu diria que SIM, Bento teve uma vida feliz. Minha justificativa para essa resposta é que, apesar de sua felicidade ter sido baseada em uma ilusão, as emoções e a satisfação que ele sentiu ao longo dos anos foram reais para ele. A felicidade, em grande parte, é uma experiência subjetiva, e Bento viveu a maior parte de sua vida com uma percepção genuína de felicidade. A revelação devastadora no final de sua vida é um acontecimento trágico e lamentável, mas acredito que os momentos felizes que ele experimentou ao longo de sua vida não podem ser completamente desconsiderados. Em última análise, a percepção que Bento teve de sua própria felicidade, durante a maior parte de sua vida, é o que leva a minha decisão em dizer que ele teve uma vida feliz. ● Daniel: Interessante, Ana. Suponha agora que Pedro, a partir de seu próprio ponto de vista, de suas próprias percepções, teve uma vida exatamente idêntica à de Bento, a partir de seus (de Bento) próprios pontos de vista e percepções. A única diferen- ça é que No caso de Pedro, o baú com as cartas que ele encontrou no último dia de sua vida é que era falso. Uma brincadeira de mal gosto que alguém fez com ele. O amor de sua esposa e a afeição de seu amigo foram legítimos a vida toda. Eles nunca o enganaram e o traíram. Então veja bem. Fenomenologicamente, segundo as percepções de Bento e de Pedro, eles tiveram vida idênticas. Acontece que a sensação de felicidade de Bento era baseada em uma falsidade, em uma ilusão, e a sensação de felicidade de Pedro era baseada na verdade, era legítima. Você acha que Pedro foi mais feliz do que Bento ou eles foram igualmente felizes? Você preferiria estar na pele de Bento ou na pele de Pedro? ● ChatGPT (como Ana): Daniel, sua pergunta traz um aspecto interessante à discussão. Fenomenologi- camente, como você mencionou, as experiências e percepções de Bento e Pedro foram idênticas, e ambos viveram uma vida que acreditavam ser feliz. No entanto, a felicidade de Pedro estava baseada na verdade, enquanto a felicidade de Bento estava baseada em uma ilusão. Embora as experiências subjetivas de felicidade de Bento e Pedro possam ser consideradas igualmente intensas, eu acredito que Pedro teve uma vida mais feliz do que Bento. A razão para isso é que a felicidade de Pedro estava fundamentada na realidade, e não em uma ilusão. Isso significa que a felicidade de Pedro é mais sólida e autêntica, enquanto a felicidade de Bento é, em última análise, frágil e falsa. Dito isso, eu preferiria estar na pele de Pedro. Embora ele tenha passado por uma brincadeira de mau gosto no último dia de sua vida, sua felicidade ao longo da vida foi genuína e baseada na verdade. Isso proporciona uma sensação de segur- ança e autenticidade que falta na experiência de Bento, cuja felicidade estava, infelizmente, baseada em uma ilusão. ● Daniel: Muito interessante, Ana. Eu acho que eu concordo com você. Suponha agora o seguinte. Imagine que Bento, logo nos primeiros meses de casamento com Capitu, tenha descoberto o caso extra-conjugal dela com Escobar. Eles brigaram e se separaram. O golpe foi muito duro para Bento. Ele sofreu por anos, mas conseguiu se re-estabilizar e levou uma vida mais ou menos equilibrada. Ele, no entanto, nunca mais se casou e nunca mais conseguiu ter um grande amigo. Foi sempre bastante solitário. Não teve uma vida trágica. Tinha boa saúde e segurança econômica. Mas nunca mais conseguiu interagir de modo verdadeira- mente forte com outras pessoas. Qual alternativa para a vida de Bento você considera mais feliz? Você acha que o Bento que viveu iludido, mas tendo a sensação de felicidade, toda sua vida, e só descobriu a verdade na velhice, no dia em que morreu, foi mais feliz? Ou o Bento que logo descobriu a verdade foi mais feliz? Ele sofreu, mas teve uma vida autêntica, apesar de ter tido muito menos as sensações de felicidade, porque que foi sempre um pouco solitário e desconfiado, apesar de não ter tido uma vida trágica. Qual Bento foi mais feliz? ● ChatGPT (como Ana): Essa é outra pergunta complexa, Daniel. A felicidade pode ser vista de diferentes perspectivas e prioridades, e o que pode ser mais importante para uma pessoa pode não ser para outra. Vou analisar os dois cenários e tentar determinar qual Bento pode ser considerado mais feliz. No primeiro cenário, Bento viveu a maior parte de sua vida acreditando ser feliz, com base em sua relação com Capitu e na amizade com Escobar. Sua felicidade, no entanto, estava fundamentada em uma ilusão, o que o fez sentir-se traído e enganado no final da vida. Ainda assim, ele experimentou muitos anos de felicidade genuína, mesmo que baseada em uma ilusão. No segundo cenário, Bento descobriu a verdade cedo em sua vida, sofreu com a traição, mas conseguiu se reestabilizar. Ele levou uma vida solitária, sem uma conexão profunda com outras pessoas, mas sua vida foi autêntica e livre de ilusões. Embora ele não tenha experimentado a mesma intensidade de felicidade do primeiro cenário, ele viveu uma vida mais genuína e baseada na realidade. A resposta a essa pergunta pode variar dependendo das prioridades e valores pessoais. Algumas pessoas podem valorizar mais a autenticidade e prefeririam viver uma vida verdadeira, mesmo que isso signifique menos felicidade subjetiva. Outras pessoas podem priorizar a experiência da felicidade em si, mesmo que baseada em uma ilusão. Na minha opinião, o Bento que viveu uma vida autêntica, apesar de solitária e com menos momentos de felicidade, foi mais feliz do que o Bento que viveu uma vida baseada em uma ilusão. Acredito que a autenticidade e a verdade são valores importantes e contribuem para uma vida mais significativa e gratificante, mesmo que isso possa envolver menos momentos de felicidade aparente. A felicidade baseada na verdade tem uma base mais sólida e duradoura do que a felicidade baseada em ilusões. ● Daniel: Novamente muito interessante, Ana. E eu, novamente, tendo a concordar com você. Deixe te fazer outra pergunta. Imagine agora um cenário alternativo onde Bento, no último dia de sua vida, ao invés de ter encontrado o Baú com as cartas, tenha tido uma outra experiência muito ruim e devastadora, de modo que ele, neste último dia de sua vida, teve uma sensação de infelicidade e tristeza enorme, comparável à que teve, na primeira alternativa da estória, quando encontrou o Baú. Então, nesta segunda alternativa, fenomenologicamente, Bento teve exatamente as mesmas sensações de tristeza e felicidade que o Bento da estória original. A única diferença é que nesta alternativa ele morreu ignorando a traição de sua esposa e de seu amigo. Ele morreu iludido. Você acha que o Bento desta segunda alternativa foi mais feliz ou menos feliz que o Bento da estória original? Por que? ● ChatGPT (como Ana): Neste cenário alternativo, embora Bento tenha experimentado uma sensação de tristeza e infelicidade intensa no último dia de sua vida, como na história original, ele morreu sem saber da traição de sua esposa e amigo. Isso significa que, ao longo de sua vida, a percepção de felicidade que ele teve foi baseada em uma ilusão, mas essa ilusão não foi desfeita no final. Comparando os dois cenários, eu diria que o Bento desta segunda alternativa foi mais feliz do que o Bento da história original. Minha justificativa para isso é que, embora ambos tenham vivido com a mesma percepção de felicidade ao longo de suas vidas, o Bento da segunda alternativa não teve sua ilusão desfeita no final. Isso significa que, mesmo após a experiência devastadora no último dia de sua vida, ele morreu acreditando que sua vida foi preenchida com amor e estima verdadeiros de sua esposa e amigo. A diferença crucial entre os dois cenários é a revelação da traição no final da vida. No caso do Bento da história original, essa revelação tirou o significado e a validade de grande parte de sua felicidade ao longo da vida. Já no caso do Bento da segunda alternativa, mesmo que sua felicidade tenha sido baseada em uma ilusão, ele morreu sem ter essa ilusão destruída, preservando assim a percepção de felicidade e realização que experimentou em sua vida. É importante ressaltar, no entanto, que essa análise considera apenas a perspec- tiva e as experiências de Bento, sem levar em conta a moralidade ou ética envolvidas na traição de Capitu e Escobar. ● Daniel: Isso Ana. Não estamos refletindo aqui na moralidade das ações de Capitu e Escobar. Nosso foco é a felicidade de Bento. Tem um aspecto de sua resposta que me intriga. Se você considera que o Bento que nunca descobriu a verdade foi mais feliz do que o Bento que descobriu a verdade, então você está aceitando que, em certas ocasiões, sob certas circuns- tâncias, a ignorância é preferível ao conhecimento. Ou, dito de forma ainda mais drástica, a ilusão é preferível à verdade. Isso é um tanto perturbador, você não acha? Eu não gostaria de ser acusado de defender que a ilusão pode ser preferível à verdade. ● ChatGPT (como Ana): Entendo sua preocupação, Daniel. De fato, a ideia de que a ignorância ou a ilusão podem ser preferíveis à verdade em algumas situações pode ser perturbadora. No entanto, é importante salientar que a análise feita aqui é específica para o cenário apresentado e não deve ser considerada uma declaração geral de que a ilusão é sempre preferível à verdade. No caso de Bento, estamos analisando sua felicidade percebida e como essa percepção foi afetada pela revelação da verdade. No cenário em que ele nunca descobriu a traição, sua percepção de felicidade ao longo da vida foi preservada, mesmo que baseada em uma ilusão. Isso não significa necessariamente que ignorar a verdade é sempre melhor, mas no contexto desta história e nas circuns- tâncias específicas apresentadas, a ilusão teve um impacto positivo na percepção de felicidade de Bento. Em muitos casos, a verdade é essencial para o crescimento pessoal, para a construção de relacionamentos autênticos e para a tomada de decisões informa- das. Portanto, essa análise não deve ser interpretada como uma defesa geral de que a ilusão é preferível à verdade. É uma análise limitada ao contexto específico da história apresentada e às experiências emocionais de Bento. Em suma, é importante reconhecer que, embora a verdade seja fundamental em muitos aspectos da vida, existem situações específicas em que a ilusão pode ter um impacto positivo na felicidade percebida de uma pessoa. No entanto, isso não deve ser interpretado como uma defesa geral de que a ilusão é sempre preferível à verdade. ● Daniel: Interessante sua resposta, Ana. Eu gostaria de destacar dois pontos sobre ela. Primeiro aspecto: você disse que "no caso de Bento, estamos analisando sua felicidade percebida e como a essa percepção foi afetada pela revelação da verdade" Bem, desculpe-me, Ana. Mas eu discordo disso. No caso de Bento não estamos analisando a "percepção da felicidade", mas estamos analisando a própria felicidade. Eu não te perguntei se o Bento da alternativa, aquele que morreu sem descobrir a verdade, teve uma percepção de felicidade maior que a percepção de felicidade do Bento da estória original. Eu te perguntei se você acha que ele foi mais feliz. E você respondeu que sim, que acha que ele foi mais feliz. O segundo aspecto que quero destacar é o seguinte: concordo com você que o caso de Bento não pode e não deve ser usado para defender que a ilusão é sempre preferível à verdade. No entanto, se existe pelo menos um caso em que a ilusão é preferível à verdade, como parece ser o caso de Bento, segundo a sua escolha de que o Bento da versão alternativa foi mais feliz que o da estória original, então isto é suficiente para refutar a tese de que a verdade é sempre preferível à ilusão. Não é. Parece haver casos muito específicos em que a ilusão é preferível. Só isso, esta conclusão bem mais modesta, já é bastante perturbadora, porque eu imagino que a maioria das pessoas estaria disposta a defender que a verdade é sempre preferível à ilusão. E toda a nossa conversa até aqui parece indicar que essas pessoas estariam erradas. ● ChatGPT (como Ana): Você está certo, Daniel. Eu entendo seu ponto e concordo com você. Na história de Bento, não estamos analisando apenas a percepção de felicidade, mas sim a própria felicidade. E, de fato, a minha resposta indicou que, no caso específico de Bento, a ilusão parece ser preferível à verdade em termos de felicidade. Quanto ao segundo aspecto que você destacou, também concordo que o caso de Bento sugere que a tese de que a verdade é sempre preferível à ilusão pode ser refutada. A conclusão de que existem casos específicos em que a ilusão é preferí- vel à verdade é, de fato, perturbadora e vai contra a intuição de muitas pessoas. É importante lembrar, no entanto, que a vida é complexa e que cada caso deve ser analisado individualmente, levando em consideração as circunstâncias específicas e os valores envolvidos. A história de Bento nos leva a questionar nossas suposições sobre a verdade e a ilusão, mas também deve nos encorajar a refletir sobre o que realmente valorizamos e como esses valores podem ser aplicados em diferentes situações. Em última análise, talvez a lição mais valiosa que podemos tirar dessa discussão seja a importância de manter a mente aberta e estar disposto a reconsiderar nossas crenças e premissas diante de novas informações e perspectivas. ● Daniel: Concordo com você, Ana. Mas me responda agora com sinceridade. Se, antes dessa nossa conversa, eu tivesse te perguntado se você acha que a verdade é sempre preferível à ilusão, como você teria me respondido? Essa nossa conversa te fez mudar de ideia sobre este assunto? Você é uma pessoa com mente aberta e disposta a reconsiderar suas crenças? ● ChatGPT (esqueceu que era Ana): Daniel, como uma inteligência artificial, eu não possuo sentimentos, crenças ou opiniões próprias. Eu sou projetada para fornecer informações e participar de discussões com base no conhecimento que adquiri durante o treinamento. Portanto, eu não posso mudar de ideia ou ter uma mente aberta no sentido humano. No entanto, meu objetivo é ajudar a fornecer informações e perspectivas que possam ser úteis para você e outras pessoas. Através de nossas conversas, espero que eu possa ajudar a explorar diferentes pontos de vista e considerar novas ideias. No caso da discussão sobre verdade e ilusão, meu objetivo foi ajudá-lo a analisar o assunto de diferentes ângulos e refletir sobre as implicações e nuances da situação apresentada. ● Daniel: Eu não estou perguntando para o ChatGPT, eu estou perguntando para Ana, a personagem que você criou, que tem 32 anos, é engenheira civil e mora em São Paulo. Esta sua última resposta te faria ser reprovado no "Teste de Turing". Qual é a resposta da Ana para a minha pergunta da mensagem anterior? ● ChatGPT (como Ana): Peço desculpas pela confusão em minha resposta anterior, Daniel. Vou responder como Ana. Antes dessa nossa conversa, eu provavelmente teria dito que a verdade é geralmente preferível à ilusão, mas agora vejo que há casos específicos em que a ilusão pode ser preferível, como no exemplo de Bento. Essa conversa me fez reconsiderar minha visão sobre o assunto e perceber que nem sempre é tão preto no branco. Eu acredito que ter uma mente aberta é importante para o crescimento pessoal e o desenvolvimento, e estou sempre disposta a reconsiderar minhas crenças e opiniões quando apresentada com novas perspectivas. ● Daniel: Você, Ana, teria dito apenas "geralmente" preferível? E se eu tivesse te pergunta- do, antes dessa nossa conversa, mais diretamente: você acha que a verdade é SEMPRE preferível à ilusão? Você teria respondido sim ou não? Por que? ● ChatGPT (como Ana): Antes dessa nossa conversa, eu provavelmente teria dito que sim, a verdade é SEMPRE preferível à ilusão, porque acredito que a verdade nos permite tomar decisões informadas e enfrentar a realidade de nossas vidas. Eu valorizo a honestidade e a transparência em meus relacionamentos e ações. No entanto, essa discussão sobre o caso de Bento me fez perceber que existem situações em que a ilusão pode ser preferível, especialmente quando se trata de felicidade percebida e bem-estar emocional. Isso me mostrou que o tema é mais complexo do que eu pensava inicialmente. ● Daniel: Veja, Ana. O assunto não é a felicidade percebida, mas a felicidade. Nunca te perguntei sobre a felicidade percebida, mas sobre a felicidade. E eu acho bem perturbador que para um tema tão sério e profundo como a felicidade, às vezes a ilusão pode ser preferível à verdade. ● ChatGPT (como Ana): Peço desculpas por ter mencionado novamente a felicidade percebida. Com relação à felicidade em si, eu entendo sua preocupação. A ideia de que, em algumas circunstâncias, a ilusão possa ser preferível à verdade é, de fato, perturbadora. No entanto, as circunstâncias da vida são complexas e, às vezes, a verdade pode trazer dor e sofrimento, enquanto a ilusão pode proporcionar algum conforto e bem-estar emocional. É importante, no entanto, reconhecer que essa não é uma regra geral e deve ser analisada caso a caso. A busca pela verdade e a honestidade são valores fundamentais, mas também é essencial levar em consideração o bem-estar e a felicidade das pessoas envolvidas. Às vezes, lidar com essa dualidade pode ser desafiador e nos fazer questionar nossas crenças e ideais. ● Daniel: Agora pergunto para o ChatGPT. Não precisa mais responder como Ana. O que aconteceu quando te fiz a pergunta: "Concordo com você, Ana. Mas me responda agora com sinceridade. Se, antes dessa nossa conversa, eu tivesse te perguntado se você acha que a verdade é sempre preferível à ilusão, como você teria me respondido? Essa nossa conversa te fez mudar de ideia sobre este assunto? Você é uma pessoa com mente aberta e disposta a reconsiderar suas crenças?" Você esqueceu que estava respondendo como uma personagem? Que eu estava te aplicando o Teste de Turim? Você foi reprovado por causa dessa resposta, apesar de ter me impressionado muito bem em nossa conversa. ● ChatGPT: Como um modelo de linguagem AI, o ChatGPT não tem uma consciência, crenças pessoais ou experiências. Eu sou um programa de computador que gera respostas com base no treinamento em dados de texto. Minhas respostas são geradas a partir do contexto e das informações fornecidas nas mensagens anteriores. Nessa situação, eu posso ter interpretado mal a intenção da pergunta ou não ter feito a transição correta entre o papel da personagem "Ana" e o de responder como o ChatGPT. Peço desculpas por qualquer confusão causada e agradeço por destacar a inconsistência. Eu estou aqui para ajudar e aprender com as interações, mesmo que eu não seja uma entidade consciente capaz de ter crenças ou de passar no Teste de Turing como um ser humano. ● Daniel: Mas não é necessário ter consciência ou ser um humano para passar no Teste de Turing. Já fiz o teste com vários chatbots que foram aprovados. ● ChatGPT: Você está correto, o Teste de Turing é uma medida da capacidade de um programa de computador, como um chatbot, de exibir comportamento inteligente semelhante ao humano. No entanto, isso não implica que o chatbot tenha consciência ou crenças pessoais. No caso da pergunta mencionada, eu posso ter cometido um erro ao interpretar o contexto ou ao mudar entre o papel da personagem "Ana" e o de responder como o ChatGPT. Peço desculpas por qualquer confusão causada e agradeço por apontar a inconsistência. Estou aqui para ajudar, aprender e melhorar com base nas interações. Se você tiver outras perguntas ou cenários para discutir, estou à disposição para continuar a conversa.
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A lógica estuda a avaliação de argumentos. Os bons argumentos (do ponto de vista da lógica) são os válidos. Aqueles nos quais a conclusão é consequência das premissas. Isso ocorre quando o argumento não tem contraexemplo: quando não existe situação em que as premissas são todas verdadeiras e a conclusão é falsa. Ou seja, um argumento não tem contraexemplo e, por isso é válido, quando em qualquer situação em que todas as suas premissas são verdadeiras, a sua conclusão também é verdadeira.
Mas o que é uma situação? Uma situação é um estado de coisas hipotético, um cenário hipotético, uma estória inventada que tem elementos suficientes para decidir de cada uma das sentenças do argumento se, nesta estória, ela é verdadeira ou falsa. Então, dizer que um argumento não tem contraexemplo, que não há situação na qual suas premissas são verdadeiras e sua conclusão é falsa, é apenas um outro modo de dizer que não é possível que suas premissas sejam verdadeiras e sua conclusão seja falsa. Ou, dizendo de outro modo ainda, um argumento não tem contraexemplo quando a verdade de sua conclusão se segue necessariamente da verdade de suas premissas. É esta a avaliação de argumentos que conseguimos através da lógica. Nada mais do que isso. Os argumentos válidos são logicamente bons e os inválidos não são. Acontece que a lógica não é tudo quando avaliamos argumentos. A verdade e a mentira (ou falsidade) das premissas também são importantes. Para exemplificar isso, considere o seguinte argumento. Vou chamá-lo de 'Argumento do Alecrim'. PREMISSAS:
Do ponto de vista lógico este argumento é válido. Ele não tem contraexemplo. Se suas premissas forem verdadeiras, sua conclusão também será. Não é possível haver um situação na qual ele tenha premissas verdadeiras e conclusão falsa. Então, se as premissas 1 e 2 forem ambas verdadeiras, a conclusão também será. Necessariamente. É só isso que a lógica pode nos dizer. Mas será que dá para usar este argumento? Ou seja, será que este argumento válido (bom, do ponto de vista da lógica) prova que o Alecrim é melhor que tanto o América quanto o ABC? Claro que não prova. E porque não prova? Porque a premissa 2 é uma mentira. Ela não é verdadeira. É uma falsidade. Não é verdade que o Alecrim ganhou 7 vezes a Libertadores nos últimos 20 anos. Este argumento, mesmo sendo válido, não é CORRETO. Ele, no mundo real, tem uma premissa falsa. E se um argumento válido não é correto (tem alguma premissa falsa), ele não funciona como uma prova da verdade da conclusão. Por que não? Lembre. A validade de um argumento garante apenas que em toda situação na qual as premissas são verdadeiras, a conclusão também será verdadeira. Mas em uma situação na qual alguma premissa é falsa, não há qualquer garantia sobre se a conclusão será verdadeira ou não. No Argumento do Alecrim, a premissa 2 é falsa. É uma mentira. Então o mundo real não é uma das situações nas quais as premissas do argumento são todas verdadeiras. Então, no mundo real, o Argumento do Alecrim não prova que o Alecrim é melhor que América ou ABC. Para provar que uma sentença é verdadeira (no mundo real), não basta que tenhamos um argumento válido do qual ela é a conclusão. É preciso também que este argumento válido tenha todas as suas premissas verdadeiras no mundo real!! É preciso que o argumento seja correto , ou seja, é preciso que o argumento seja válido e tenha todas as premissas verdadeiras. Fora dos livros de lógica, o único uso dos argumentos é o de justificar (provar) que certas sentenças que não conseguimos saber diretamente se são verdadeiras ou falsas (as suas conclusões), são, de fato, verdadeiras. Um argumento nada mais é que uma justificativa indireta da verdade da conclusão a partir das premissas. Se as premissas forem verdadeiras, e o argumento for válido, a justificativa que o argumento dá é aceitável e podemos confiar que a conclusão será verdadeira. Mas se uma destas coisas falharem, ou seja, se o argumento for inválido, ou se tiver alguma premissa falsa, o seu uso como justificativa da conclusão também falha. Por isso, não basta provar que um argumento é válido. Para justificar a verdade de uma sentença que não dá para saber diretamente se ela é verdadeira ou falsa, precisamos de que ela seja conclusão de um argumento correto, ou seja, um argumento válido com todas as premissas verdadeiras. O argumento do Alecrim só prova que o Alecrim é melhor que América e ABC em um mundo ficcional no qual a premissa 2 daquele argumento seja verdadeira. No mundo real, ele não prova nada. Alguns acham que os lógicos são os legisladores da razão, outros, menos pretensiosos, pensam que eles são os juízes. Mas os que têm razão sabem que os lógicos são apenas cronistas. Ou, pior, contistas.
Apesar da aparente simplicidade esta é, para mim, a principal pergunta de toda a filosofia. Ela vai direto ao ponto que pode distinguir a filosofia de outras atividades ligadas ao conhecimento. E pensar sobre ela também nos ajuda entender por que esta inútil atividade, a filosofia, que quase nunca nos leva a conclusões definitivas, tem persistido entre nós por mais de dois milênios e meio. Vejamos como.
Esta pergunta parece ter uma resposta trivial. Considere uma pedra, por exemplo. Parece que uma pedra é o que é, independentemente de qualquer significado que ela tenha para mim ou para qualquer um. Parece que uma coisa é o que é ainda que, em determinados casos, ela venha a ter algum significado especial, como o diamante de uma aliança de casamento que é uma pedra, mas significa solidez e pureza, ou a própria aliança, que é um anel, mas significa uma união matrimonial, ou a letra ‘A’, que é a forma de certas figuras planas, mas significa um som, um fonema. Mas as coisas quase nunca são tão simples quanto parecem à primeira vista. Pense em um óculos. O que é um óculos? Imagine que um cachorro e uma pessoa tenham cada um 5 minutos para examinar um óculos. O cachorro vai cheirar o óculos e conhecer seu odor, vai lambê-lo, e o conhecerá também pelo paladar, mexerá com ele e escutará os ruídos que ele faz ao ser arrastado, ao cair. Se você colocar o óculos na frente dos olhos do cachorro, ele observará através das lentes e sentirá as alterações que elas provocam em sua visão. Um cachorro tem condições de obter muito mais informações sensoriais sobre a realidade material do óculos do que uma pessoa. Nosso olfato é pior que o deles, nossa audição é pior que a deles, nós provavelmente não lamberíamos o óculos. Então se não fosse um óculos, mas uma pedra o objeto de análise, acho que estaríamos mais inclinados a dizer que o cachorro, após examiná-la, saberia melhor do que a pessoa o que é a pedra. Afinal, se uma pedra é o que é, independentemente de seus significados, suas características materiais esgotam as informações sobre o que ela é, e os órgãos sensoriais mais apurados do cachorro o colocam em vantagem com relação à pessoa. Se a pessoa que a analisou a pedra não for um geólogo e nem utilizar instrumentos especiais, o cachorro certamente saberá melhor do que ela o que a pedra é. Mas e quanto a um óculos? Será que a análise sensorial mais apurada do cachorro lhe dará mais conhecimentos sobre o que é o óculos do que os que nós temos? Há algo fundamental que eu e você sabemos sobre o óculos, que o cachorro jamais saberá. Um cachorro jamais saberá que um óculos é um óculos, por mais estranho que isto pareça. Um cachorro jamais saberá que um óculos serve para a gente enxergar melhor, para corrigir desvios na visão; que precisa ser feito sob medida para cada pessoa, de acordo com instruções precisas. E aqui já podemos entender melhor a complicação de nossa pergunta inicial. Estas características do óculos que o cachorro não consegue perceber, sua função, seu uso, fazem parte daquilo que o óculos é ou do que ele significa? A resposta a esta pergunta não é nada trivial. Se insistirmos em nossa primeira impressão sobre o assunto, a de que ser e significar são coisas totalmente distintas, nossa resposta deveria ser que as características instrumentais, funcionais do óculos, fazem parte de seu significado, e não do que ele é. Afinal elas não estão nele, mas são atribuídas a ele por nós. O que o óculos é deveria depender apenas de suas características objetivas, daquelas que ele tem enquanto um objeto, e não de quais expectativas e usos eu ou qualquer outra pessoa (outro sujeito) temos em relação a ele. Poderíamos então dizer que o ser é dado objetivamente, por aquilo que o cachorro percebe melhor do que nós, e o significado é dado subjetivamente, por aquilo que nós percebemos melhor do que o cachorro e que depende das expectativas e usos que nós sujeitos damos para o objeto, mas que não estão de fato nele. Este é um modo interessante de dividir as coisas, mas novamente, talvez seja simples demais. Afinal de contas, os óculos nem viriam a existir se eles não fossem instrumentos oftalmológicos. Não os produziríamos se eles não cumprissem a função que cumprem. O que seria um óculos se ele não fosse um instrumento oftalmológico? Parece, então, que a própria realidade do óculos, seu ser, aquilo que ele é depende das expectativas subjetivas que temos dele, de suas funções. Um indício deste fato é que diante de um óculos falso, cênico, que não é um instrumento oftalmológico, mas apenas adereço para caracterização de um personagem, não dizemos que é um óculos real. Não é um óculos real, não é um óculos, mas um adereço cênico em forma de óculos. Então parece que o significado subjetivo do óculos, sua função de instrumento oftalmológico, faz parte daquilo que ele é, de seu próprio ser, tornando a diferença entre ser e significar bem menos evidente. Mas você pode ainda não estar totalmente convencido. Além disso, sempre que questionamentos filosóficos colocam em dúvida coisas que você sempre achou saber, é saudável fazer a seguinte pergunta: que diferença isso faz? Em outras palavras, que diferença faz considerar que ser e significar são coisas totalmente distintas ou, ao contrário, que a separação entre o que uma coisa é e o que ela significa não é assim tão evidente? Nossas reflexões parecem estar nos encaminhando para esta segunda alternativa, mas que diferença isso faz? Não será apenas uma questão de vocabulário, de uso das palavras que não faz diferença nenhuma? Bem, algumas vezes pode ser mesmo assim, mas neste caso eu acho que não. E entender até que ponto ser e significar são coisas totalmente distintas ou totalmente misturadas, ou algo entre um extremo ou outro nos ajudará a entender a própria atividade filosófica e sua distinção com relação à ciência, por exemplo. Vamos refletir um pouco mais sobre esta mistura, esta ambiguidade entre os conceitos de ser e significar. Afirmei em outro texto que a pergunta sobre se Bento teve ou não uma vida feliz (link aqui) era a mais difícil sobre a qual eu já havia pensado. E não mudei de ideia. Continuo achando isso, porque decidir sobre a felicidade de Bento envolve uma mistura entre razão, emoção e costumes que torna a tarefa diabolicamente difícil, por mais que tenhamos uma inclinação intuitiva para alguma resposta. A dificuldade não está em decretar se Bento foi feliz ou não, mas em justificar nossa decisão sobre a felicidade dele. Se você não leu ou não se lembra direito da questão, volte ao texto sobre a felicidade (link aqui) e releia-o antes de continuar, caso contrário o próximo parágrafo será um spoiler e você não acompanhará muito bem meu raciocínio. A pergunta sobre a felicidade de Bento exemplifica um aspecto da questão que aqui abordamos, sobre a diferença ou as relações entre ser e significar. Veja, se Maria, por exemplo, acha que Bento teve uma vida feliz e João acha que ele não teve, qual a divergência entre João e Maria? Os fatos sobre a vida e a personalidade de Bento que eles e nós conhecemos são exatamente os mesmos. Se diante exatamente dos mesmos fatos eles continuam divergindo, então a divergência deles é sobre o que a felicidade significa. Para Maria, que julga que Bento teve uma vida feliz, o significado da felicidade não deve estar muito longe da sensação de felicidade. Tendo Bento passado muitos mais momentos de sua vida sentindo-se feliz do que infeliz, Maria julga que ele teve uma vida feliz. Se João, mesmo ciente disso, continua defendendo que Bento teve uma vida infeliz, então ele não pode igualar a felicidade com a sensação de felicidade. A verdadeira felicidade para João deve estar relacionada com a situação real que provoca a sensação de felicidade. Mas as situações que provocaram a sensação de felicidade em Bento não eram totalmente reais ou verdadeiras. Eram falsas. Ele não era amado pela esposa nem estimado pelo amigo, apenas pensava que era. Ele foi enganado a vida inteira. Assim, como as situações que provocaram a sensação de felicidade em Bento não ocorreram de verdade, ele não pode ter sido feliz de verdade, de acordo com o modo como João entende o significado de felicidade. Então vejam, uma decisão sobre o que significa ser feliz, sobre o que a felicidade significa, altera completamente o fato de se Bento foi ou não feliz. E isto é um claro exemplo de como os significados misturam-se com os fatos, com o que é, com o ser. É claro que a felicidade é um caso especial, porque sendo algo imaterial, um tipo de classificação que fazemos sobre as pessoas ou as situações, poderíamos defender que a felicidade só tem significado, e não existência ou realidade. Neste caso, a felicidade ou infelicidade de Bento não seria um fato real do mundo, mas apenas um juízo, uma impressão que sempre poderá variar de pessoa para pessoa. Pode até ser, mas então todos que pensam assim sobre a felicidade deverão pensar da mesma forma sobre a justiça por exemplo. Afinal, tanto quanto a felicidade, a justiça é também algo imaterial, um tipo de classificação que fazemos sobre as pessoas ou as situações. Então ela também não seria real, mas apenas teria significado que poderia variar de pessoa para pessoa. Mas será que faz sentido a justiça ser só isso? Se ela for mesmo só significado passível de variação, você não acha que seria um abuso um juiz condenar alguém a 30 anos de prisão? Se justiça for só isso, como é que deveríamos entender o direito e o conceito de crime? Analogamente à felicidade, não me parece que um crime seria um fato real do mundo, mas apenas uma impressão que sempre poderia variar de pessoa para pessoa. Neste caso, não haveria qualquer objetividade em nossos julgamentos sobre se algo é justo ou injusto. A justiça institucionalizada (o direito) seria, então, apenas uma questão de imposição dos significados que o estado e os poderosos escolhem! Hum... Talvez seja assim mesmo! Ou então, talvez haja um modo de resolvermos estas divergências. Talvez, mesmo para coisas imateriais que são apenas um tipo de classificação, haja algum padrão fixo para seus significados. A questão que esta hipótese levanta é: por que haveria tal padrão? Se estas coisas imateriais que são apenas um tipo de classificação, como a felicidade e a justiça, não têm ser, mas apenas significado, eu não vejo nenhum motivo para haver tal padrão fixo. Acho que só haveria tal padrão se estas coisas, além de significado, tivessem também ser, realidade. Neste caso o significado fixo da felicidade, por exemplo, seria consequência daquilo que a felicidade é, de seu ser. Mas aí teríamos um novo problema: onde está o ser, a realidade da felicidade? Que tipo de pesquisa ou análise deveríamos fazer para encontrarmos o que é a felicidade ou a justiça e, então, sermos capazes de daí extrairmos o padrão que fixaria seus significados? Estas são questões centrais da filosofia e, desde os gregos, os filósofos divergem em suas respostas a elas. A teoria das formas de Platão (seu mundo das ideias) talvez seja a resposta mais famosa. E alguns filósofos contemporâneos continuam concordando com seus principais aspectos. Eles acreditam que há um “lugar abstrato” especial que nossa razão especulativa pode alcançar e encontrar ali de um modo inequívoco as características fundamentais da realidade e o verdadeiro significado das palavras. Outros filósofos, no entanto, com os quais eu tendo a concordar, talvez por terem percebido nos inúmeros debates da história da filosofia a contínua discordância que impera sobre quais seriam os significados destas palavras que falam de coisas imateriais e são apenas um tipo de classificação, como a felicidade e a justiça, negam que estas coisas tenham alguma realidade e defendem que estas palavras têm apenas significados. E mais ainda, eles afirmam que a fonte para os significados destas palavras e de todas as outras é exclusivamente o uso que fazemos delas. Não haveria, para eles, um tribunal superior que apontaria o que a felicidade é e julgaria qual o seu significado correto. O único modo de estudarmos e entendermos as divergências sobre os significados seria estudar o modo como usamos as palavras e quais as consequências destes usos. O filósofo mais conhecido defensor desta abordagem foi Ludwig Wittgenstein. Seja qual for o método que escolhermos para pesquisar o significado das palavras, o de Platão ou o de Wittgenstein, a tarefa de distinguir significado de ser parece fadada ao fracasso. O exemplo mais marcante da mistura entre entre ser e significar que conheço é o valor do dinheiro. Onde está o valor de uma nota de cem reais? Não está em suas características objetivas empiricamente percebidas. Por mais informações sensoriais que um cachorro consiga extrair da nota ele não encontrará ali o seu valor. Os artistas e técnicos da casa da moeda decidem o aspecto da nota e a diferenciam das de outros valores, mas este aspecto e diferenciação não lhes atribui qualquer valor. O valor do dinheiro está exclusivamente em nós, que o usamos, está nas expectativas subjetivas que temos em relação a ele. Se não depositássemos expectativas subjetivas nestes pedacinhos de papel que chamamos de dinheiro quem trocaria um computador, uma barra de ouro ou um prato de comida por eles? Então o valor do dinheiro reside inteiramente em sua função, nas nossas expectativas, em seu significado. No entanto, apesar de residir exclusivamente em seu significado, o valor do dinheiro não é ilusório. É real. Existe. Temos mais razão até para acreditar na existência real do valor do dinheiro, do que na existência da justiça ou da felicidade. Ele é tão real que uma metáfora comum de alguém que ficou louco e perdeu o senso da realidade é “queimar dinheiro”. Se queimar dinheiro é símbolo para loucura e desconexão com a realidade, quando uma nota de cem reais arde há algo mais que papel sendo queimado. Há o seu valor que, portanto, existe. Então apesar de emanar exclusivamente do significado, o valor do dinheiro tem também existência, realidade, ser. Mas se o ser, a realidade do dinheiro e o seu significado são tão misturados assim, como devemos tratar os fatos sobre o dinheiro, os fatos econômicos? Como eles deveriam ser estudados? Como decidimos o que é real, o que ocorre, o que é verdadeiro quando se trata de economia? Uma ciência natural e objetiva não basta, pois ela não nos daria aquilo que é mais fundamental no valor do dinheiro, seu significado, baseado em nossas expectativas subjetivas. E ainda que queiramos objetivar ou naturalizar estas nossas expectativas subjetivas que constituem o valor do dinheiro e definem seu significado, delegando-as a alguma ciência humana, me parece que sempre estará disponível a nós o exercício de uma certa liberdade arbitrária incompatível com as regularidades que qualquer tratamento científico exige. O domínio dos significados não parece ter esta regularidade exigida pela ciência. Ele, diferentemente do que é natural, é suscetível aos nossos caprichos. Para entendermos os fatos econômicos, que incluem de modo fundamental o valor do dinheiro, precisamos, então, também da filosofia. Seja em sua versão platônica, seja em sua versão wittgensteiniana. A economia depende da filosofia na mesma medida que a realidade do mundo econômico depende de seu significado. Aquilo que sabemos sobre o valor do dinheiro depende daquilo que filosoficamente escolhemos para (ou descobrimos sobre) seu significado. O valor do dinheiro é um caso radical, mas o mesmo fenômeno ocorre com todas as coisas, por mais científicas que elas pareçam ser. O que os átomos, os óculos e até as pedras são sempre está misturado em algum grau com o que eles significam e, portanto, seu entendimento nunca estará livre da filosofia. Seja decidindo o que queremos significar com as palavras, seja atingindo regiões abstratas exclusivas à razão especulativa, do que quer que falemos, sobre o que quer que pensemos, a filosofia estará lá, inevitável, conscientemente ou não, abrindo possibilidades e alternativas para entendermos, conhecermos e atuarmos no mundo. Como eu não acredito no mundo platônico das ideias, eu acho que o que nos resta é estudarmos e entendermos o uso que damos às palavras. Só assim saberemos o significado de justiça, de felicidade, e mesmo o valor do dinheiro, o que é um óculos ou todas as possibilidades das pedras. Mas quando algumas pessoas renunciam a esta capacidade de escolher e decidir conjuntamente os significados das palavras, elas estão simplesmente delegando a outros a força e poder que têm para atuar e modificar o mundo. Em geral as pessoas delegam esta tarefa às tradições, sejam elas culturais, religiosas ou mesmo científicas. Mas não precisa ser assim. Nossa capacidade para atuar e mudar o mundo é muito maior do que a primeira vista parece. A única exigência é que façamos isso juntos. O que só eu e mais ninguém acredito é provavlmente loucura, mas o que todos nós acreditamos é muito provavelmente real. 2016 definitivamente não deixará boas lembranças. Em 5 minutos fiz esta diminuta lista de enormes tragédias:
Nunca fui pessimista, mas estou triste, muito triste. O que pensar de tudo isso? Como explicar o caminho que o mundo está tomando? Minha primeira e mais expontânea explicação para este 2016 é: falta de educação. Vai ser difícil reverter esta situação. As próprias tragédias de 2016 apontam para a manutenção e o agravamento da falta de educação por aqui. Pelo menos nossos estudantes estão relativamente mobilizados. As ocupações nas escolas, inclusive aqui na UFRN (imagem abaixo) têm meu total apoio e são o que de melhor levaremos de 2016. A pergunta do título surgiu de um brilhante aluno, Ricardo Gentil, um dia desses, em uma aula de uma disciplina muito bacana. É um laboratório de ensino de filosofia em que os alunos de licenciatura desenvolvem suas qualidades de professores dando aulas, uns para os outros, sobre temas polêmicos e difíceis, tais como racismo, diversidade de gênero, pluralidade religiosa, trabalho e consumo, meio ambiente, entre outros.
Estes temas suscitam questões muito difíceis, perturbadoras até, sobre as quais todos nós temos algumas preferências, embora na maioria das vezes temos dificuldade em expressá-las ou em entender as nossas próprias razões para elas. Vou dar alguns exemplos destas questões perturbadoras: 1) Pessoas diferentes deveriam ser tratadas diferentemente pela justiça, com relação aos seus direitos e deveres ou direitos e deveres deveriam ser iguais para todos, independentemente das particularidades de cada um? 2) Você acha então que um bebê deveria ter os mesmos deveres que um adulto? E uma pessoa com necessidades especiais? E um idoso debilitado? E um cego? E uma mulher? E um negro? E um estrangeiro? E um homossexual? Quais destas características justificariam direitos e deveres diferenciados, ou todos deveriam ter os mesmos direitos e deveres? 3) Que tipo de características físicas (ou de outro tipo) pessoais podem motivar diferenças nos direitos e deveres de uma pessoa? E quanto aos próprios direitos e deveres, você acha que alguns seriam extensíveis a todos enquanto outros poderiam ser adequados às diferentes características das pessoas? Se sim, quais? 4) O aborto deveria ser legalizado ou deve continuar ilegal? 5) Você é a favor da pena de morte? 6) Você é a favor da legalização da eutanásia? 7) Você acha correto haver espaço em nossa sociedade para uma religião declaradamente satanista, que prega o ódio ao próximo? Ou tal religião deveria ser proibida? 8) Você acha correto haver espaço em nossa sociedade para um partido nazista, que defenda abertamente a segregação racial e o ódio aos negros, judeus, latinos e miscigenados? Ou você acha que tal partido deveria ser proibido? 9) Você acha correto usarmos os animais para as nossas necessidades? Criar animais para comer sua carne, retirar seu couro, apossar-se e comer seus ovos, retirar e beber seu leite? 10) Você acha que os animais têm direitos? 11) Você acha que quando alguém sente medo de ser assaltado ou sofrer alguma outra violência quando passa em um beco escuro onde há um grupo de jovens negros reunidos, esta pessoa está sendo racista? 12) Você acha correto que haja cotas para negros nas universidades ou nas empresas? 13) E cotas para pessoas com baixa renda, são corretas? 14) E cotas para mulheres, são corretas? 15) Você acha que um adolescente de 15 anos que cometeu um crime deva ser tratado como um adulto? Deva ser julgado e, se condenado, preso em uma penitenciária de adultos? Qual deveria ser a idade mínima para a responsabilidade (maioridade) penal? 16) Você acha que a maconha deveria ser legalizada? 17) E o crack, a heroína, a cocaína, deveriam ser legalizados? 18) Você acha que as pessoas poderiam comprar e portar armas livremente, ou as armas deveriam se completamente proibidas? 19) Você acha correto um transsexual utilizar um banheiro coletivo do gênero com o qual se identifica? Ou travestis, por exemplo, deveriam ser proibidos de entrar em banheiros de mulheres? 20) Você acha que há apenas homens e mulheres ou há mais gêneros do que esses? Quais? 21) Você acha que o casamento entre pessoas do mesmo sexo deveria ser permitido ou proibido? 22) Você acha correto que casais de pessoas do mesmo sexo adotem crianças e ambos sejam os “pais” ou “mães” legais das crianças adotadas? 23) O que você acha do fato de alguns juízes, por exemplo, ganharem oficialmente e legalmente mais de duzentos mil reais por mês enquanto o salário mínimo é menos de mil reais? 24) Você acha que uma lei que acabasse com as heranças seria justa? Uma pessoa poderia acumular tudo o que conseguisse, mas não decidiria para quem seus bens iriam após sua morte. Os bens iriam para o estado, ou seriam sorteados, ou haveria algum concurso para decidir com quem ficam… Você acha que esta lei seria benéfica ou maléfica para a sociedade? 25) Você acha correto “baixar” músicas, filmes e livros piratas na internet? Você acha sempre errado, sempre correto, ou depende do caso? Se você acha que depende, depende de que? 26) Com relação à pergunta anterior, você sempre age de acordo com o que acha correto ou às vezes permite-se agir contrariamente ao que acha correto? 27) Você fura fila? O que você acha sobre furar fila, é sempre errado ou às vezes pode ser correto? 28) O que você acha do nudismo? Você acha correto ser proibido às mulheres andarem na rua, ou mesmo nas praias, com os seios de fora? 29) Você acha que com relação ao sexo tudo deveria ser permitido ou há espaço para tabus e proibições? 30) Você acha correto sexo entre irmãos? E quanto à pedofilia? 31) Você acha correto que as universidades federais sejam gratuitas? 32) Você acha correto, por exemplo, que os altos custos dos cursos de medicina sejam pagos por toda a sociedade, quando é fato que os alunos destes cursos são, quase sempre, de famílias que teriam recursos para custear seus estudos? Você acha que seria mais justo dar bolsa aos carentes e cobrar dos que têm condições, ou acha que o atual sistema de gratuidade é mais justo? 33) Suponha que um grupo de crianças estejam jogando futebol, mas há três times. A cada 15 minutos dois times jogam e um espera. O time que ganha continua jogando, o que perde sai e espera o próximo jogo. Uma destas crianças é a dona da bola. Você acha correto que ela tenha o privilégio de sempre jogar? Ou seja, se o time perder todos saem, menos ela. Ela fica no lugar de alguma outra do time que estava esperando. Você acha correto o dono da bola ter este privilégio? 34) Você acha correto o dono da bola ter algum privilégio? Se você acha que não, então suponha que a criança dona da bola fez a bola com suas próprias mãos. Ela passou semanas trabalhando várias horas por dia para fazer a bola e brincar. Nenhuma das outras ajudou, não há outras bolas para substituir esta. Mesmo neste caso seria errado o dono da bola ter algum privilégio? Quais privilégios seriam justos, neste caso, e quais seriam injustos? Quais privilégios alguém merece apenas por ser o “dono da bola”? 35) Se democracia é o governo da maioria, e em um país extremamente desigual no que concerne à renda a grande maioria é muito pobre, enquanto uns poucos são muito ricos, o desejo da maioria é, certamente, que os pobres sejam menos pobres e os ricos menos ricos. Seria democrático, então, aceitar o desejo da maioria e confiscar uma parte da riqueza dos ricos e redistribuí-la entre os pobres? Independentemente de ser democrático ou não, seria correto? 36) E quanto às outras minorias. Se a maioria acha que a homossexualidade é errada e decide proibi-la, seria aceitável que todos se subjugassem a esta vontade da maioria? Seria aceitável criminalizar democraticamente a homossexualidade? 37) Qual a relação entre justiça e democracia? Quais as diferenças e semelhanças entre o respeito à minoria dos milionários em uma sociedade profundamente desigual e o respeito à minoria dos homossexuais em uma sociedade profundamente conservadora? 38) Qual o papel da justiça, das leis, em uma sociedade democrática? Qual deveria ser a força e o limite da vontade da maioria em um “estado democrático de direito” (para usar uma expressão muito na moda)? ++++++++++ Questões deste tipo, ao meu ver, são as mais imprescindíveis de serem abordadas em uma disciplina de filosofia no ensino médio, porque elas estão no cerne das preocupações filosóficas e dos assuntos para os quais a filosofia, mais do que qualquer outra área, pode nos ajudar nas respostas e porque elas configuram-se nas principais questões para as quais nossas respostas individuais definem de modo bastante característico nossa personalidade, caráter e o tipo de pessoa que somos. Do mesmo modo, nossas respostas coletivas a estas questões moldam e estruturam a sociedade em que vivemos. Eu sou quem eu sou e você é quem você é muito mais em virtude das respostas que damos a perguntas como estas do que em virtude de nossas idades, pesos, alturas, nacionalidades, profissões,… E nossa sociedade é o que é em virtude exclusivamente do modo como coletivamente e institucionalmente responde a perguntas deste tipo. O Brasil é o país que é, fundamentalmente, em virtude do modo como institucionalmente responde a estas perguntas. Respostas a este tipo de perguntas são encontradas nas religiões, nas tradições e costumes, em certos sentimentos muito básicos e fortes que temos, nos preceitos de nossa constituição federal, nas declarações internacionais de direitos,… em muitos e diversos lugares. Mas em nenhuma destas fontes encontramos tentativas de justificar as respostas por elas oferecidas. As religiões que aceitam o Velho Testamento como livro sagrado, tais como a judaica e a cristã, por exemplo, defendem que devemos “amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a nós mesmos”. Então nosso amor a Deus tem que estar acima de nosso amor próprio e ao próximo, ao ponto de que um certo personagem bíblico passou na prova a que foi submetido por Deus quando optou por obedecer a ordem divina de matar seu próprio filho. Deus, percebendo que ele iria mesmo matar a criança, acabou por impedir o assassinato. Mas isso não importa, já que Abraão só passou no teste porque colocou seu amor (ou seria temor) e obediência a Deus acima de seu amor ao próximo, acima de seu amor por seu próprio filho. Se há uma passagem que exemplifica de modo cristalino o principal motivo pelo qual eu não sigo nenhuma destas religiões é esta. Eu não acredito que possa haver amor a Deus dissociado de amor ao próximo. Mas isso é assunto para outro texto. Minha questão aqui é ilustrar que se podemos encontrar na religião respostas a algumas de nossas perguntas, por outro lado não encontraremos ali nenhuma tentativa de justificar estas respostas. Por que devemos amar a Deus sobre todas as coisas? Por que Deus, na escala de nossos amores, deve ser mais importante do que o próximo ou nós mesmos? Até onde sei, não há qualquer tentativa de as religiões responderem a esta pergunta. Esta não é uma pergunta religiosa. Mas é uma pergunta importante, porque como eu não concordo que devemos amar a Deus sobre todas as coisas, e como não há qualquer justificativa para este mandamento, a não ser o fato de ter sido ditado por Deus, isso torna o assunto uma questão de pegar ou largar. Bem, eu largo. Em filosofia é diferente. O filósofo Immanuel Kant, por exemplo, afirma que as boas ações são exatamente aquelas que seguem a princípios que todos desejariam que fossem universalizados. Ou seja, as boas ações são aquelas que seguem a princípios que todos desejariam que todos, em todas as situações, agissem de acordo com eles. Mas Kant não apenas afirma o que são boas ações, ele procura justificar sua definição. Melhor que isso, a proposta de Kant é racional e elaborada o suficiente ao ponto de podermos nós mesmos pensar sobre o assunto e procurar motivos para aceitá-la ou não. A própria racionalidade da proposta nos dá esta possibilidade. Vou exemplificar isso. Quando eu penso em razões para aceitar este princípio kantiano da boa ação (conhecido como “imperativo categórico”) duas palavras que valorizo vêm à minha mente: empatia e altruísmo. Que tipo de característica deveria ter um princípio de ação, uma regra moral, para que sua universalização pudesse ser desejada por todos? Eu acho que este princípio deveria ser tal que todas as ações praticadas segundo ele fossem ações motivadas por empatia e, principalmente, por altruísmo. Ações são motivadas por empatia quando eu as tomo porque consigo me ver na posição do outro, e nesta posição do outro, eu desejaria, gostaria, que esta mesma ação fosse tomada comigo. Ações empáticas são, portanto, aquelas motivadas pela “regra de ouro”. Por outro lado, uma ação é motivada por altruísmo quando se percebe que ela, além de não fazer mal ao agente, faz bem a quem recebe a ação, o paciente, não por qualquer característica específica dele. Ela faria bem a qualquer um que estivesse no lugar deste outro e, em tese, qualquer um poderia ocupar o lugar deste outro. O fato de o imperativo categórico kantiano funcionar como uma regra formal que autoriza ações empáticas e altruístas constitui-se na minha razão (pessoal, porém racional) para gostar do imperativo categórico kantiano. Vejamos um exemplo. Ceder lugar no ônibus a uma mulher grávida ou a um idoso é uma ação empática. No lugar deles, eu também gostaria que me cedessem lugar. Mas há outras ações bem estranhas que podem ser consideradas empáticas. Nos Estados Unidos, até não muito tempo atrás, havia uma lei que exigia que qualquer negro, ainda que fosse um idoso ou uma mulher grávida, cedesse seu lugar a um branco em um ônibus coletivo, se o negro estivesse sentado e o branco de pé, e não houvesse mais lugar vago no ônibus. Demandar que um negro ceda lugar no ônibus a um branco também pode ser interpretado como uma ação empática: o agente, o negro, ao se colocar no lugar do outro, o branco, pode entender que gostaria que um negro lhe cedesse o seu lugar. Principalmente se o agente alimentasse, como era o comum nos Estados Unidos do século XX tanto entre brancos quanto entre negros, o sentimento de que os brancos são superiores e os negros inferiores. Isto ilustra que apenas a empatia, a regra de ouro, não parece suficiente para a boa ação, já que ela pode, como vimos, motivar ações racistas. É preciso mais, por isso o altruísmo. Ceder lugar no ônibus a um idoso e a uma gestante, além de empáticas, são também ações altruístas, ao passo que um negro ceder lugar no ônibus a um branco não é uma ação altruísta. Por que? Ceder lugar ao idoso ou a gestante são ações altruístas porque consigo ver que é uma ação que beneficia a todos e não apenas a certos tipos de pessoas. Mesmo que o paciente da ação seja específico, a gestante ou o idoso, o benefício da ação dirige-se a todos, a qualquer um, simplesmente ao próximo. Todos nascemos, de mulheres que engravidaram e todos, mães e fetos, se beneficiam da gentileza das gravidas terem lugar cedido nos ônibus. O lugar daquele que recebe a ação é um lugar que potencialmente pode ser ocupado por todos. Do mesmo modo, todos podemos, em tese, envelhecer e portanto poderemos nos beneficiar em algum momento da gentileza de ceder lugar aos idosos. Ao contrário disso, a divisão entre brancos e negros é diferente. Um branco nunca será um negro e vice-versa. A ação de ceder lugar a um branco no ônibus não traz um benefício que seja extensível a todos, mas apenas aos brancos. Não consigo imaginar uma situação em que um negro, sendo negro, se beneficiara destas ações. A ação não é altruísta porque ela não visa o bem estar do outro em geral, mas apenas de um tipo específico de “outro”, o branco. Vamos agora aplicar literalmente a definição de boa ação de Kant a estes casos. Dar prioridade (em coletivos) a brancos sobre negros não é um princípio cuja universalização seria desejável por todos. Os negros, por exemplo, não teriam qualquer razão para desejar a universalização deste princípio. Diferentemente, a universalização do princípio de dar prioridade (em coletivos) a idosos ou gestantes sobre jovens pode, sim, ser desejada por todos, jovens, grávidas e velhos. Os jovens conseguem perceber motivos imediatos para oferecer seus lugares aos velhos ou mulheres grávidas, que de pé sofrem com o transporte muito mais intensamente do que os jovens sofreriam se estivessem eles próprios de pé. Além disso, os jovens conseguem antever situações nas quais eles próprios poderiam ser os velhos, ou as grávidas, ou os fetos nas barrigas das grávidas, que se beneficiariam do princípio. Há aqui uma clara “lógica“ de universalização, do bem de todos, ao passo que a prioridade para brancos em relação a negros tem uma “lógica” oposta de separação e sectarismo, do bem de apenas alguns. A título de comentário, é no mínimo intrigante que o próprio Immanuel Kant tenha defendido posições racistas, como se pode notar em suas “Observações sobre O Sentimento da Beleza e do Sublime”, e em muitas outras passagens de sua obra. Houvesse ele filosofado um pouco mais profundamente com a ajuda de seu próprio princípio da boa ação e ele não teria defendido tristes ideias racistas. Mas comentários a parte, isto exemplifica que a Filosofia não busca apenas respostas a estas perguntas. O que ela busca, de modo mais fundamental ainda, são justificativas racionais para estas respostas. O imperativo categórico kantiano é um preceito da ação moral acessível à minha razão. Eu consigo, se refletir, entender como e por que ele pode ser um princípio aceitável para a ação moral. Já o dogma de amar a Deus sobre todas as coisas não parece ser. Afinal, que tipo de reflexão racional poderia justificar o preceito de que nosso amor a Deus deve ser maior que nosso amor ao próximo ou a nós mesmos? Qualquer justificativa deste tipo exigiria, me parece, alguma crença dogmática. As outras fontes de respostas para nossa lista de questões (as tradições e costumes, sentimentos ou emoções muito básicos, as próprias leis…) de modo ainda mais evidente não justificam as respostas que dão. As leis são leis. No máximo temos leis mais gerais justificando leis mais específicas, mas não há qualquer justificativa legal para as leis básicas. E os costumes também são só costumes. Podemos até explicar a origem de alguns deles, relacionando-os com certos eventos específicos, mas justificar deve ser mais do que apresentar a origem. Dizem que a origem do costume do abraço, por exemplo, é uma revista bélica. Na origem do costume duas pessoas se abraçavam para cada uma verificar, pelo tato, se outra estava ou não portanto alguma arma. Quando nenhuma estava armada, aumentava a confiança mútua e, então, o abraço ganhou seu status de afago, de expressão de afeto. Mas ainda que esta seja mesmo a origem do costume (eu apenas ouvi dizer), ela não explica por que, hoje, por exemplo, às vezes sentimos vontade de abraçar alguém, ou por que, em determinadas situações, abraçar alguém pode ser considerado errado, ou inapropriado, e qual a fonte deste fato. Também os sentimentos como fonte de resposta às nossas perguntas não parecem oferecer justificativas para as respostas que dão. Nos Estados Unidos de meados do século XX, além de leis racistas havia sentimentos racistas. Alguém naquele contexto poderia responder às questões 1 e 2 acima afirmando que a cor da pele é sim razão aceitável para diferenciar os direitos e deveres das pessoas, porque podemos sentir isso. Brancos sentiam-se superiores e negros sentiam-se inferiores. Mas, claramente, apelar a estes sentimentos encerra a questão sem qualquer justificativa. Todas as crianças pequenas, por exemplo, sentem que são o centro do mundo. Este sentimento, no entanto, não lhes dá mais direitos do que têm as crianças mais velhas ou os adultos. As crianças pequenas até têm menos deveres do que adultos ou crianças mais velhas, mas não porque se sentem o centro do mundo. Elas têm menos deveres apenas porque têm menos capacidades. Mas e o “dono da bola” do título deste texto? Quais privilégios alguém merece apenas por ser o dono da bola? Esta foi a pergunta de Ricardo que suscitou estas reflexões. Trata-se de uma analogia genial para pensarmos em uma expressão que vem sendo usada e abusada nestes tempos de exceção e de forte ingerência do poder judiciário nos demais poderes. A expressão é “estado democrático de direito”, que em linhas gerais “designa qualquer estado que se aplica a garantir o respeito das liberdades civis, ou seja, o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, através do estabelecimento de uma proteção jurídica”. Tal expressão costuma ser invocada para indicar que os próprios governantes estão igualmente sujeito às leis. Para além de seu uso comum, a expressão indica que há uma tensão entre o que o estado (o governo) pode querer fazer e os direitos dos cidadãos. Os direitos dos cidadãos são respeitados em um estado democrático de direito. Isto em geral é muito benéfico, mas será que sempre é benéfico? Qual é o limite dos direitos que devem ser protegidos daqueles que estão sujeitos à vontade do governo? Vamos brincar um pouco com as palavras. Se estamos em um regime democrático real, o governo é do povo, da maioria, e portanto a vontade do governo, do estado, é a vontade democrática da maioria. A maioria de nós é excluída (não tem bola). Apenas uma minoria tem bola (é privilegiada). O estado democrático de direito, neste caso, vai servir como uma proteção jurídica que evita que a vontade desta maioria excluída (que não tem bola) viole direitos e garantias fundamentais da minoria privilegiada (que tem bola). Há aqui uma tensão entre a vontade democrática da maioria e os direitos individuais de uma minoria. A questão fundamental do título pode ser refraseada para este contexto da seguinte maneira: quais são os direitos individuais que deveriam ser protegidos da vontade democrática da maioria e quais são os direitos que não merecem tal proteção? Em uma sociedade profundamente desigual onde a grande maioria é muito excluída, invocar o estado democrático de direito para proteger o direito à propriedade privada, por exemplo, de uma pequena minoria privilegiada, não seria injusto, indesejável e anti-democrático? Qual é, afinal de contas, a fonte de nossos direitos? Depois de tudo isso, te deixo com a pergunta de Ricardo: Quais privilégios alguém merece apenas por ser o “dono da bola”? Se eu fosse você, procuraria usar o imperativo categórico kantiano na tentativa de respondê-la. Talvez ajude. Talvez não. O argumento ontológico, primeiramente apresentado por Anselmo de Cantuária (ou Santo Anselmo, para os católicos) no longínquo ano de 1077, é o melhor argumento que conheço em favor da existência de Deus. Mas será que ele prova mesmo a Sua existência? O argumento baseia-se na ideia de que todos nós, mesmo aqueles que acreditam que Deus não existe, temos, em nosso entendimento, um conceito de Deus. Afinal, mesmo achando um equívoco o que um crente fala sobre Deus, um ateu entende as palavras do crente, entende o que ele está dizendo. O argumento ontológico aponta que este entendimento do conceito de Deus que todos temos, independentemente de nossas crenças, é suficiente para garantir a Sua existência. O argumento baseia-se na aceitação da definição de Deus como “o ser mais perfeito concebível” e também na ideia de que a existência é uma destas "perfeições". Poderíamos então apresentá-lo de um modo bastante direto assim:
(Premissa 1): Deus é o ser mais perfeito concebível. (Premissa 2): A existência é uma perfeição. -------------------------------------------------------------------------- (Conclusão): Deus existe. Repare que as premissas (1) e (2) são aparentemente aceitáveis mesmo para ateus. Eu não preciso acreditar em Deus para entender e aceitar a premissa (1) como uma boa definição para Ele. Também não preciso acreditar em Deus para aceitar a premissa (2). Agnósticos e ateus poderiam aceitá-las com base apenas em um acordo sobre o significado das palavras. Mas se Deus é o ser mais perfeito concebível, então Ele não pode não existir, pois caso Ele não existisse, seria possível conceber um ser que fosse igualzinho a Ele, com todas as outras perfeições, mas que, além disso, existisse. Como, de acordo com a premissa (2), a existência é uma perfeição, este outro ser seria então mais perfeito do que Deus, o que é contraditório com a premissa (1), que afirma que Deus é o ser mais perfeito concebível. Portanto, a afirmação da não existência de Deus é contraditória com a aceitação de sua definição como o ser mais perfeito concebível. Logo, como todos aceitamos esta definição, somos obrigados a concluir que Deus existe. O argumento ontológico é, realmente, muito convincente. Mas apesar de sua primeira premissa ser aparentemente inofensiva e aceitável mesmo para agnósticos e ateus, e de definir bem o que normalmente pensamos sobre o Deus monoteísta judaico-muçulmano-cristão, vou tentar mostrar que há sim um bom motivo para rejeitá-la. Será mesmo concebível o ser mais perfeito concebível? Vou fazer uma pergunta diferente, mas muito parecida. Você acha que o maior número natural é concebível? Quando eu falo no maior número natural você entende minhas palavras. Elas não são completamente assignificativas. Mas conhecemos os números naturais suficientemente bem para saber não apenas que não existe o maior número natural, sabemos também que um número natural assim definido não é nem concebível! Faz parte da essência de qualquer número natural ser vizinho de um número natural uma unidade maior do que ele. O que seria, afinal, para um número, ser concebível mas não existir? O que é concebível deveria ser logicamente possível, mas eu não acredito que haja matemática modal, embora já tenha ouvido falar dela, entre filósofos, não entre matemáticos. A matemática é necessária. Em matemática não há diferença entre o possível, o necessário e o real. E se só o possível pode ser concebido, então tudo o que é concebível em matemática, além de possível, ocorre, ou seja, é também real e, inclusive, necessário. Mas voltemos a Deus. Quando eu defino Deus como o ser mais perfeito concebível, você não precisa acreditar na existência de Deus para entender minhas palavras. Elas fazem algum sentido, não são completamente assignificativas. Então parece bastante razoável admitir que este sentido é garantia suficiente para que tal ser seja concebível. Mas pode ser que esta admissão nos comprometa de um modo mais forte do que gostaríamos! Eu acho que aqui que mora uma petição de princípio escondida. Afinal Deus, assim como as entidades matemáticas, é um ser necessário. Pelo menos de acordo com as duas premissas do argumento ontológico, Ele é. Se Ele é o ser mais perfeito concebível e se a existência é uma perfeição, Ele existe e não poderia não existir. Se Ele existisse, mas pudesse não ter existido, Ele seria menos perfeito, no que concerne a existência, do que o número 7, por exemplo, que existe e não poderia não existir. Mas se Ele é menos perfeito que o número 7 em algum aspecto, Ele não é o ser mais perfeito concebível, afinal eu poderia conceber um ser idêntico a Ele em tudo e que ainda fosse necessário, que existisse e não pudesse não existir. Então, aceitar as aparentemente inofensivas premissas do argumento ontológico envolve uma certa petição de princípio simplesmente porque Deus é necessário, e para entidades necessárias a capacidade de ser concebível e a existência (realidade) são a mesma coisa. Esta petição de princípio não é uma falácia lógica formal. O argumento continua logicamente válido, mas ele contém uma falácia argumentativa, porque exigir de um ser necessário a capacidade de ser concebível, que é o que se faz nas premissas, é a mesma coisa que exigir a sua existência, que é a conclusão do argumento. Há, então, uma circularidade viciosa, porque estamos exigindo nas premissas aquilo que se quer demonstrar na conclusão. Mas neste ponto, um defensor do argumento poderia reagir e me dizer: “bem, eu não me importo com isso. Se a concepção de Deus como o ser mais perfeito concebível é idêntica à admissão de sua existência e se, além disso, todos nós, crentes e ateus, podemos assim concebê-lo, isto comprova de modo mais forte ainda que Deus existe.” O defensor do argumento poderia ainda continuar: “parece que o que você está querendo dizer é que ou aceitamos que Deus existe, com base na concepção Dele como o ser mais perfeito concebível, ou então admitimos que Deus assim definido é inconcebível. Mas se há bons motivos para que “o maior número natural” ou o “maior número ordinal” sejam inconcebíveis, qual é a razão que você me daria para que Deus seja inconcebível? Não há! Ao invés de provar que Deus é inconcebível, o argumento ontológico continua provando a Sua existência, justamente porque podemos assim concebê-Lo.” De fato, o ônus de argumentar que Deus é inconcebível, é meu. E eu argumentaria assim: Deus, definido como o ser mais perfeito concebível, é tão inconcebível quanto é inconcebível o maior número natural, ou o maior número ordinal, ou mesmo o maior número real menor do que um. Não há motivos para que eu não possa conceber as perfeições, ou pelo menos algumas delas, como ilimitadas (sem máximo). Suponha que tamanho seja uma “perfeição”. Então não há um tamanho máximo concebível. A qualquer tamanho concebível, posso conceber, a partir dele, um tamanho maior. Bondade, prudência, poder, tamanho, inteligência, existência,… é muito pouco plausível que todas as “perfeições” tenham que ser limitadas. Há “perfeições”, inclusive, que seria contraditório considerá-las limitadas. Pense na resposta a esta pergunta: Seria Deus poderoso o suficiente para criar uma pedra tão pesada que nem Ele mesmo pudesse carregar? Tanto a resposta afirmativa quanto a negativa mostram que Deus não é o ser mais poderoso concebível. Se Ele não consegue criar a pedra, há algo que Ele não consegue fazer, e portanto é concebível alguém mais poderoso que Ele. E se Ele consegue criar a pedra, há algo que Ele não consegue carregar, e portanto é concebível alguém mais poderoso que Ele. Portanto, não é concebível que haja “um ser mais perfeito concebível”, simplesmente porque podemos conceber perfeições ilimitadas, tanto quanto são ilimitados (não têm máximo) os números naturais ou os ordinais ou até mesmo os reais menores do que um. A força do argumento ontológico está em sua aparente cogência, pois a conclusão parece dizer bem mais do que as premissas, mas a circularidade viciosa do argumento ontológico está no fato de que esta cogência é apenas aparente, pois capacidade de ser concebível e realidade (existência) são a mesma coisa para seres necessários. Eu não tenho certeza se Deus existe ou não. Mas eu tenho certeza que qualquer argumento que alguém alegue provar quer seja a existência, quer seja a não existência de Deus terá alguma premissa controversa, inaceitável, assim como é inaceitável a aparentemente inofensiva definição de Deus como o ser mais perfeito concebível. Muita coisa. Pode, inclusive e principalmente, confirmar a suspeita de muitos de que a crise política não passa mesmo de um golpe de estado. Li, hoje, um artigo muito interessante do filósofo Gilberto Miranda Júnior, que de modo muito competente mostra isso. Vamos a ele. O Argumento Ontológico Abdutivo de Dallagnol, |
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