2016 definitivamente não deixará boas lembranças. Em 5 minutos fiz esta diminuta lista de enormes tragédias:
Nunca fui pessimista, mas estou triste, muito triste. O que pensar de tudo isso? Como explicar o caminho que o mundo está tomando? Minha primeira e mais expontânea explicação para este 2016 é: falta de educação. Vai ser difícil reverter esta situação. As próprias tragédias de 2016 apontam para a manutenção e o agravamento da falta de educação por aqui. Pelo menos nossos estudantes estão relativamente mobilizados. As ocupações nas escolas, inclusive aqui na UFRN (imagem abaixo) têm meu total apoio e são o que de melhor levaremos de 2016.
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A pergunta do título surgiu de um brilhante aluno, Ricardo Gentil, um dia desses, em uma aula de uma disciplina muito bacana. É um laboratório de ensino de filosofia em que os alunos de licenciatura desenvolvem suas qualidades de professores dando aulas, uns para os outros, sobre temas polêmicos e difíceis, tais como racismo, diversidade de gênero, pluralidade religiosa, trabalho e consumo, meio ambiente, entre outros.
Estes temas suscitam questões muito difíceis, perturbadoras até, sobre as quais todos nós temos algumas preferências, embora na maioria das vezes temos dificuldade em expressá-las ou em entender as nossas próprias razões para elas. Vou dar alguns exemplos destas questões perturbadoras: 1) Pessoas diferentes deveriam ser tratadas diferentemente pela justiça, com relação aos seus direitos e deveres ou direitos e deveres deveriam ser iguais para todos, independentemente das particularidades de cada um? 2) Você acha então que um bebê deveria ter os mesmos deveres que um adulto? E uma pessoa com necessidades especiais? E um idoso debilitado? E um cego? E uma mulher? E um negro? E um estrangeiro? E um homossexual? Quais destas características justificariam direitos e deveres diferenciados, ou todos deveriam ter os mesmos direitos e deveres? 3) Que tipo de características físicas (ou de outro tipo) pessoais podem motivar diferenças nos direitos e deveres de uma pessoa? E quanto aos próprios direitos e deveres, você acha que alguns seriam extensíveis a todos enquanto outros poderiam ser adequados às diferentes características das pessoas? Se sim, quais? 4) O aborto deveria ser legalizado ou deve continuar ilegal? 5) Você é a favor da pena de morte? 6) Você é a favor da legalização da eutanásia? 7) Você acha correto haver espaço em nossa sociedade para uma religião declaradamente satanista, que prega o ódio ao próximo? Ou tal religião deveria ser proibida? 8) Você acha correto haver espaço em nossa sociedade para um partido nazista, que defenda abertamente a segregação racial e o ódio aos negros, judeus, latinos e miscigenados? Ou você acha que tal partido deveria ser proibido? 9) Você acha correto usarmos os animais para as nossas necessidades? Criar animais para comer sua carne, retirar seu couro, apossar-se e comer seus ovos, retirar e beber seu leite? 10) Você acha que os animais têm direitos? 11) Você acha que quando alguém sente medo de ser assaltado ou sofrer alguma outra violência quando passa em um beco escuro onde há um grupo de jovens negros reunidos, esta pessoa está sendo racista? 12) Você acha correto que haja cotas para negros nas universidades ou nas empresas? 13) E cotas para pessoas com baixa renda, são corretas? 14) E cotas para mulheres, são corretas? 15) Você acha que um adolescente de 15 anos que cometeu um crime deva ser tratado como um adulto? Deva ser julgado e, se condenado, preso em uma penitenciária de adultos? Qual deveria ser a idade mínima para a responsabilidade (maioridade) penal? 16) Você acha que a maconha deveria ser legalizada? 17) E o crack, a heroína, a cocaína, deveriam ser legalizados? 18) Você acha que as pessoas poderiam comprar e portar armas livremente, ou as armas deveriam se completamente proibidas? 19) Você acha correto um transsexual utilizar um banheiro coletivo do gênero com o qual se identifica? Ou travestis, por exemplo, deveriam ser proibidos de entrar em banheiros de mulheres? 20) Você acha que há apenas homens e mulheres ou há mais gêneros do que esses? Quais? 21) Você acha que o casamento entre pessoas do mesmo sexo deveria ser permitido ou proibido? 22) Você acha correto que casais de pessoas do mesmo sexo adotem crianças e ambos sejam os “pais” ou “mães” legais das crianças adotadas? 23) O que você acha do fato de alguns juízes, por exemplo, ganharem oficialmente e legalmente mais de duzentos mil reais por mês enquanto o salário mínimo é menos de mil reais? 24) Você acha que uma lei que acabasse com as heranças seria justa? Uma pessoa poderia acumular tudo o que conseguisse, mas não decidiria para quem seus bens iriam após sua morte. Os bens iriam para o estado, ou seriam sorteados, ou haveria algum concurso para decidir com quem ficam… Você acha que esta lei seria benéfica ou maléfica para a sociedade? 25) Você acha correto “baixar” músicas, filmes e livros piratas na internet? Você acha sempre errado, sempre correto, ou depende do caso? Se você acha que depende, depende de que? 26) Com relação à pergunta anterior, você sempre age de acordo com o que acha correto ou às vezes permite-se agir contrariamente ao que acha correto? 27) Você fura fila? O que você acha sobre furar fila, é sempre errado ou às vezes pode ser correto? 28) O que você acha do nudismo? Você acha correto ser proibido às mulheres andarem na rua, ou mesmo nas praias, com os seios de fora? 29) Você acha que com relação ao sexo tudo deveria ser permitido ou há espaço para tabus e proibições? 30) Você acha correto sexo entre irmãos? E quanto à pedofilia? 31) Você acha correto que as universidades federais sejam gratuitas? 32) Você acha correto, por exemplo, que os altos custos dos cursos de medicina sejam pagos por toda a sociedade, quando é fato que os alunos destes cursos são, quase sempre, de famílias que teriam recursos para custear seus estudos? Você acha que seria mais justo dar bolsa aos carentes e cobrar dos que têm condições, ou acha que o atual sistema de gratuidade é mais justo? 33) Suponha que um grupo de crianças estejam jogando futebol, mas há três times. A cada 15 minutos dois times jogam e um espera. O time que ganha continua jogando, o que perde sai e espera o próximo jogo. Uma destas crianças é a dona da bola. Você acha correto que ela tenha o privilégio de sempre jogar? Ou seja, se o time perder todos saem, menos ela. Ela fica no lugar de alguma outra do time que estava esperando. Você acha correto o dono da bola ter este privilégio? 34) Você acha correto o dono da bola ter algum privilégio? Se você acha que não, então suponha que a criança dona da bola fez a bola com suas próprias mãos. Ela passou semanas trabalhando várias horas por dia para fazer a bola e brincar. Nenhuma das outras ajudou, não há outras bolas para substituir esta. Mesmo neste caso seria errado o dono da bola ter algum privilégio? Quais privilégios seriam justos, neste caso, e quais seriam injustos? Quais privilégios alguém merece apenas por ser o “dono da bola”? 35) Se democracia é o governo da maioria, e em um país extremamente desigual no que concerne à renda a grande maioria é muito pobre, enquanto uns poucos são muito ricos, o desejo da maioria é, certamente, que os pobres sejam menos pobres e os ricos menos ricos. Seria democrático, então, aceitar o desejo da maioria e confiscar uma parte da riqueza dos ricos e redistribuí-la entre os pobres? Independentemente de ser democrático ou não, seria correto? 36) E quanto às outras minorias. Se a maioria acha que a homossexualidade é errada e decide proibi-la, seria aceitável que todos se subjugassem a esta vontade da maioria? Seria aceitável criminalizar democraticamente a homossexualidade? 37) Qual a relação entre justiça e democracia? Quais as diferenças e semelhanças entre o respeito à minoria dos milionários em uma sociedade profundamente desigual e o respeito à minoria dos homossexuais em uma sociedade profundamente conservadora? 38) Qual o papel da justiça, das leis, em uma sociedade democrática? Qual deveria ser a força e o limite da vontade da maioria em um “estado democrático de direito” (para usar uma expressão muito na moda)? ++++++++++ Questões deste tipo, ao meu ver, são as mais imprescindíveis de serem abordadas em uma disciplina de filosofia no ensino médio, porque elas estão no cerne das preocupações filosóficas e dos assuntos para os quais a filosofia, mais do que qualquer outra área, pode nos ajudar nas respostas e porque elas configuram-se nas principais questões para as quais nossas respostas individuais definem de modo bastante característico nossa personalidade, caráter e o tipo de pessoa que somos. Do mesmo modo, nossas respostas coletivas a estas questões moldam e estruturam a sociedade em que vivemos. Eu sou quem eu sou e você é quem você é muito mais em virtude das respostas que damos a perguntas como estas do que em virtude de nossas idades, pesos, alturas, nacionalidades, profissões,… E nossa sociedade é o que é em virtude exclusivamente do modo como coletivamente e institucionalmente responde a perguntas deste tipo. O Brasil é o país que é, fundamentalmente, em virtude do modo como institucionalmente responde a estas perguntas. Respostas a este tipo de perguntas são encontradas nas religiões, nas tradições e costumes, em certos sentimentos muito básicos e fortes que temos, nos preceitos de nossa constituição federal, nas declarações internacionais de direitos,… em muitos e diversos lugares. Mas em nenhuma destas fontes encontramos tentativas de justificar as respostas por elas oferecidas. As religiões que aceitam o Velho Testamento como livro sagrado, tais como a judaica e a cristã, por exemplo, defendem que devemos “amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a nós mesmos”. Então nosso amor a Deus tem que estar acima de nosso amor próprio e ao próximo, ao ponto de que um certo personagem bíblico passou na prova a que foi submetido por Deus quando optou por obedecer a ordem divina de matar seu próprio filho. Deus, percebendo que ele iria mesmo matar a criança, acabou por impedir o assassinato. Mas isso não importa, já que Abraão só passou no teste porque colocou seu amor (ou seria temor) e obediência a Deus acima de seu amor ao próximo, acima de seu amor por seu próprio filho. Se há uma passagem que exemplifica de modo cristalino o principal motivo pelo qual eu não sigo nenhuma destas religiões é esta. Eu não acredito que possa haver amor a Deus dissociado de amor ao próximo. Mas isso é assunto para outro texto. Minha questão aqui é ilustrar que se podemos encontrar na religião respostas a algumas de nossas perguntas, por outro lado não encontraremos ali nenhuma tentativa de justificar estas respostas. Por que devemos amar a Deus sobre todas as coisas? Por que Deus, na escala de nossos amores, deve ser mais importante do que o próximo ou nós mesmos? Até onde sei, não há qualquer tentativa de as religiões responderem a esta pergunta. Esta não é uma pergunta religiosa. Mas é uma pergunta importante, porque como eu não concordo que devemos amar a Deus sobre todas as coisas, e como não há qualquer justificativa para este mandamento, a não ser o fato de ter sido ditado por Deus, isso torna o assunto uma questão de pegar ou largar. Bem, eu largo. Em filosofia é diferente. O filósofo Immanuel Kant, por exemplo, afirma que as boas ações são exatamente aquelas que seguem a princípios que todos desejariam que fossem universalizados. Ou seja, as boas ações são aquelas que seguem a princípios que todos desejariam que todos, em todas as situações, agissem de acordo com eles. Mas Kant não apenas afirma o que são boas ações, ele procura justificar sua definição. Melhor que isso, a proposta de Kant é racional e elaborada o suficiente ao ponto de podermos nós mesmos pensar sobre o assunto e procurar motivos para aceitá-la ou não. A própria racionalidade da proposta nos dá esta possibilidade. Vou exemplificar isso. Quando eu penso em razões para aceitar este princípio kantiano da boa ação (conhecido como “imperativo categórico”) duas palavras que valorizo vêm à minha mente: empatia e altruísmo. Que tipo de característica deveria ter um princípio de ação, uma regra moral, para que sua universalização pudesse ser desejada por todos? Eu acho que este princípio deveria ser tal que todas as ações praticadas segundo ele fossem ações motivadas por empatia e, principalmente, por altruísmo. Ações são motivadas por empatia quando eu as tomo porque consigo me ver na posição do outro, e nesta posição do outro, eu desejaria, gostaria, que esta mesma ação fosse tomada comigo. Ações empáticas são, portanto, aquelas motivadas pela “regra de ouro”. Por outro lado, uma ação é motivada por altruísmo quando se percebe que ela, além de não fazer mal ao agente, faz bem a quem recebe a ação, o paciente, não por qualquer característica específica dele. Ela faria bem a qualquer um que estivesse no lugar deste outro e, em tese, qualquer um poderia ocupar o lugar deste outro. O fato de o imperativo categórico kantiano funcionar como uma regra formal que autoriza ações empáticas e altruístas constitui-se na minha razão (pessoal, porém racional) para gostar do imperativo categórico kantiano. Vejamos um exemplo. Ceder lugar no ônibus a uma mulher grávida ou a um idoso é uma ação empática. No lugar deles, eu também gostaria que me cedessem lugar. Mas há outras ações bem estranhas que podem ser consideradas empáticas. Nos Estados Unidos, até não muito tempo atrás, havia uma lei que exigia que qualquer negro, ainda que fosse um idoso ou uma mulher grávida, cedesse seu lugar a um branco em um ônibus coletivo, se o negro estivesse sentado e o branco de pé, e não houvesse mais lugar vago no ônibus. Demandar que um negro ceda lugar no ônibus a um branco também pode ser interpretado como uma ação empática: o agente, o negro, ao se colocar no lugar do outro, o branco, pode entender que gostaria que um negro lhe cedesse o seu lugar. Principalmente se o agente alimentasse, como era o comum nos Estados Unidos do século XX tanto entre brancos quanto entre negros, o sentimento de que os brancos são superiores e os negros inferiores. Isto ilustra que apenas a empatia, a regra de ouro, não parece suficiente para a boa ação, já que ela pode, como vimos, motivar ações racistas. É preciso mais, por isso o altruísmo. Ceder lugar no ônibus a um idoso e a uma gestante, além de empáticas, são também ações altruístas, ao passo que um negro ceder lugar no ônibus a um branco não é uma ação altruísta. Por que? Ceder lugar ao idoso ou a gestante são ações altruístas porque consigo ver que é uma ação que beneficia a todos e não apenas a certos tipos de pessoas. Mesmo que o paciente da ação seja específico, a gestante ou o idoso, o benefício da ação dirige-se a todos, a qualquer um, simplesmente ao próximo. Todos nascemos, de mulheres que engravidaram e todos, mães e fetos, se beneficiam da gentileza das gravidas terem lugar cedido nos ônibus. O lugar daquele que recebe a ação é um lugar que potencialmente pode ser ocupado por todos. Do mesmo modo, todos podemos, em tese, envelhecer e portanto poderemos nos beneficiar em algum momento da gentileza de ceder lugar aos idosos. Ao contrário disso, a divisão entre brancos e negros é diferente. Um branco nunca será um negro e vice-versa. A ação de ceder lugar a um branco no ônibus não traz um benefício que seja extensível a todos, mas apenas aos brancos. Não consigo imaginar uma situação em que um negro, sendo negro, se beneficiara destas ações. A ação não é altruísta porque ela não visa o bem estar do outro em geral, mas apenas de um tipo específico de “outro”, o branco. Vamos agora aplicar literalmente a definição de boa ação de Kant a estes casos. Dar prioridade (em coletivos) a brancos sobre negros não é um princípio cuja universalização seria desejável por todos. Os negros, por exemplo, não teriam qualquer razão para desejar a universalização deste princípio. Diferentemente, a universalização do princípio de dar prioridade (em coletivos) a idosos ou gestantes sobre jovens pode, sim, ser desejada por todos, jovens, grávidas e velhos. Os jovens conseguem perceber motivos imediatos para oferecer seus lugares aos velhos ou mulheres grávidas, que de pé sofrem com o transporte muito mais intensamente do que os jovens sofreriam se estivessem eles próprios de pé. Além disso, os jovens conseguem antever situações nas quais eles próprios poderiam ser os velhos, ou as grávidas, ou os fetos nas barrigas das grávidas, que se beneficiariam do princípio. Há aqui uma clara “lógica“ de universalização, do bem de todos, ao passo que a prioridade para brancos em relação a negros tem uma “lógica” oposta de separação e sectarismo, do bem de apenas alguns. A título de comentário, é no mínimo intrigante que o próprio Immanuel Kant tenha defendido posições racistas, como se pode notar em suas “Observações sobre O Sentimento da Beleza e do Sublime”, e em muitas outras passagens de sua obra. Houvesse ele filosofado um pouco mais profundamente com a ajuda de seu próprio princípio da boa ação e ele não teria defendido tristes ideias racistas. Mas comentários a parte, isto exemplifica que a Filosofia não busca apenas respostas a estas perguntas. O que ela busca, de modo mais fundamental ainda, são justificativas racionais para estas respostas. O imperativo categórico kantiano é um preceito da ação moral acessível à minha razão. Eu consigo, se refletir, entender como e por que ele pode ser um princípio aceitável para a ação moral. Já o dogma de amar a Deus sobre todas as coisas não parece ser. Afinal, que tipo de reflexão racional poderia justificar o preceito de que nosso amor a Deus deve ser maior que nosso amor ao próximo ou a nós mesmos? Qualquer justificativa deste tipo exigiria, me parece, alguma crença dogmática. As outras fontes de respostas para nossa lista de questões (as tradições e costumes, sentimentos ou emoções muito básicos, as próprias leis…) de modo ainda mais evidente não justificam as respostas que dão. As leis são leis. No máximo temos leis mais gerais justificando leis mais específicas, mas não há qualquer justificativa legal para as leis básicas. E os costumes também são só costumes. Podemos até explicar a origem de alguns deles, relacionando-os com certos eventos específicos, mas justificar deve ser mais do que apresentar a origem. Dizem que a origem do costume do abraço, por exemplo, é uma revista bélica. Na origem do costume duas pessoas se abraçavam para cada uma verificar, pelo tato, se outra estava ou não portanto alguma arma. Quando nenhuma estava armada, aumentava a confiança mútua e, então, o abraço ganhou seu status de afago, de expressão de afeto. Mas ainda que esta seja mesmo a origem do costume (eu apenas ouvi dizer), ela não explica por que, hoje, por exemplo, às vezes sentimos vontade de abraçar alguém, ou por que, em determinadas situações, abraçar alguém pode ser considerado errado, ou inapropriado, e qual a fonte deste fato. Também os sentimentos como fonte de resposta às nossas perguntas não parecem oferecer justificativas para as respostas que dão. Nos Estados Unidos de meados do século XX, além de leis racistas havia sentimentos racistas. Alguém naquele contexto poderia responder às questões 1 e 2 acima afirmando que a cor da pele é sim razão aceitável para diferenciar os direitos e deveres das pessoas, porque podemos sentir isso. Brancos sentiam-se superiores e negros sentiam-se inferiores. Mas, claramente, apelar a estes sentimentos encerra a questão sem qualquer justificativa. Todas as crianças pequenas, por exemplo, sentem que são o centro do mundo. Este sentimento, no entanto, não lhes dá mais direitos do que têm as crianças mais velhas ou os adultos. As crianças pequenas até têm menos deveres do que adultos ou crianças mais velhas, mas não porque se sentem o centro do mundo. Elas têm menos deveres apenas porque têm menos capacidades. Mas e o “dono da bola” do título deste texto? Quais privilégios alguém merece apenas por ser o dono da bola? Esta foi a pergunta de Ricardo que suscitou estas reflexões. Trata-se de uma analogia genial para pensarmos em uma expressão que vem sendo usada e abusada nestes tempos de exceção e de forte ingerência do poder judiciário nos demais poderes. A expressão é “estado democrático de direito”, que em linhas gerais “designa qualquer estado que se aplica a garantir o respeito das liberdades civis, ou seja, o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, através do estabelecimento de uma proteção jurídica”. Tal expressão costuma ser invocada para indicar que os próprios governantes estão igualmente sujeito às leis. Para além de seu uso comum, a expressão indica que há uma tensão entre o que o estado (o governo) pode querer fazer e os direitos dos cidadãos. Os direitos dos cidadãos são respeitados em um estado democrático de direito. Isto em geral é muito benéfico, mas será que sempre é benéfico? Qual é o limite dos direitos que devem ser protegidos daqueles que estão sujeitos à vontade do governo? Vamos brincar um pouco com as palavras. Se estamos em um regime democrático real, o governo é do povo, da maioria, e portanto a vontade do governo, do estado, é a vontade democrática da maioria. A maioria de nós é excluída (não tem bola). Apenas uma minoria tem bola (é privilegiada). O estado democrático de direito, neste caso, vai servir como uma proteção jurídica que evita que a vontade desta maioria excluída (que não tem bola) viole direitos e garantias fundamentais da minoria privilegiada (que tem bola). Há aqui uma tensão entre a vontade democrática da maioria e os direitos individuais de uma minoria. A questão fundamental do título pode ser refraseada para este contexto da seguinte maneira: quais são os direitos individuais que deveriam ser protegidos da vontade democrática da maioria e quais são os direitos que não merecem tal proteção? Em uma sociedade profundamente desigual onde a grande maioria é muito excluída, invocar o estado democrático de direito para proteger o direito à propriedade privada, por exemplo, de uma pequena minoria privilegiada, não seria injusto, indesejável e anti-democrático? Qual é, afinal de contas, a fonte de nossos direitos? Depois de tudo isso, te deixo com a pergunta de Ricardo: Quais privilégios alguém merece apenas por ser o “dono da bola”? Se eu fosse você, procuraria usar o imperativo categórico kantiano na tentativa de respondê-la. Talvez ajude. Talvez não. |
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