Dia desses caiu em minhas mãos o “Guia Politicamente Incorreto da Filosofia”, de Luiz Pondé. Desde seu lançamento tenho visto com curiosidade este livro nas prateleiras de livrarias e nas mãos de algumas pessoas. O título é excelente. Passa a ideia de que um especialista vai enfim nos falar com franqueza algumas verdades inconvenientes que só a filosofia pode revelar, mas que ninguém tem a coragem de admitir. Eu estava com a curiosidade aguçada, afinal, acho que muita gente, como eu, tem um pouco de preguiça do bom-mocismo exagerado que muitas vezes acompanha certos discursos politicamente corretos. Que decepção! Li muito pouco do livro, e cada página que avancei só fez aumentar meu mal-estar com a leitura. Parece que politicamente incorreto, para o autor, é sinônimo de elitismo, preconceitos generalizados, arrogância, acidez gratuita, empáfia, e por aí a fora. Selecionei alguns poucos trechos do livro para exemplificar o que foi me irritando durante a leitura:
Vamos com calma. O que significa dizer que “não existem direitos sem deveres”? E o que significa dizer que os deveres são uma “contrapartida anterior” dos direitos? Eu admito que em uma sociedade onde ninguém assuma certos deveres, muitos direitos não terão a possibilidade de serem usufruídos. Por exemplo, a possibilidade de desfrutarmos o direito de viver em uma cidade limpa depende, entre outras coisas, do dever de mantê-la limpa. Se ninguém assumir este dever, ninguém usufruirá daquele direito. No entanto, o dever de manter a cidade limpa não é uma “contrapartida anterior” do direito de viver em uma cidade limpa. Primeiro porque este direito é de todos, mas este dever não. Se eu fosse uma criança de 2 anos continuaria tendo o direito de viver em uma cidade limpa mas não teria o dever de mantê-la limpa; e segundo, porque a única motivação concebível para o estabelecimento de deveres é a de garantir que os direitos sejam desfrutados. Não faz qualquer sentido assumir algo como dever se não for para garantir que algum direito anteriormente estabelecido seja desfrutado. A inteligibilidade do conceito de dever depende do conceito de direito. O contrário não ocorre. Os direitos são inteligíveis por si sós. É apenas depois que nós, enquanto sociedade, decidimos que todos têm o direito de viver em cidades limpas, que surge, em decorrência do estabelecimento deste direito, alguns deveres (como o dever de não sujar os espaços públicos) que serão apenas instrumentos garantidores do usufruto do direito estabelecido. Os deveres só passam a existir após o estabelecimento dos direitos. Então os direitos nasceram primeiro e a relação de dependência correta entre direitos e deveres não é, como Pondé afirma, “não existem direitos sem deveres”, mas exatamente seu contrário: não existem deveres sem direitos! Há argumentos ainda mais fortes para evidenciar este seu equívoco. Os direitos mais importantes são universais, aplicam-se a todos sem exceção, já os deveres sempre admitem exceções. Há, certamente, alguns direitos secundários que não se estendem a todos, não são universais. Por exemplo, as crianças, os cegos, os sem habilitação, os habilitados mas sob o efeito de álcool não têm direito de dirigir automóveis em vias públicas. No entanto, estes direitos seletivos são secundários, meramente instrumentais. Os direitos fundamentais, como o direito à vida, estes são universais. Aplicam-se a todos sem exceção. Quanto aos deveres, não há nenhum dever universal. Há cidadãos, por exemplo, que não têm qualquer dever, apenas direitos. Quais os deveres que um bebê ou alguém com uma desordem psiquiátrica severa, ou alguém em coma têm? Nenhum. Isso pode retirar-lhes alguns direitos secundários, como o direito de dirigir em vias públicas, mas não lhes retira nenhum direito fundamental. Eles usufruem dos mesmos direitos básicos que todos os outros cidadãos usufruem. Os direitos fundamentais são estabelecidos universalmente, para todos, porque eles são a base da vida social. Não são, portanto, os deveres individuais de cada um que garantem seus direitos individuais. Se assim o fosse os bebês não teriam direitos, uma vez que eles não têm qualquer dever. [1] Os deveres sempre são obrigação apenas daqueles capazes de assumi-los. Mas quando Pondé sugere que uma certa tendência de atribuir direitos a animais (“frangos e piolhos”, como ele diz) é equivocada porque os direitos não são separados dos deveres, sendo estes “contrapartida anterior” daqueles, ele não nos deixa nenhuma opção a não ser interpretar suas palavras como sugerindo que animais não deveriam ser dignos de direitos porque eles não são capazes de assumir deveres. Mas eu não consigo nem conceber que ele esteja sugerindo isso. Mesmo para alguém que, como ele, está reclamando que uns poucos virtuosos e inteligentes carregam nas costas o resto da massa burra e viciosa, a sugestão de que só é digno de direitos quem for capaz de assumir deveres me parece inconcebível. Ela o levaria para muito além do politicamente incorreto. Este princípio, que parece fundamentar a tese de que os animais não são dignos de direitos, fundamenta também a posição que nega direitos aos bebês e demais seres humanos incapacitados. Mas por mais que eu considere arrogantes, superficiais, elitistas, preconceituosas e afetadas as ideias gerais do autor, e embora suas palavras no livro até o ponto da citação acima não me deixem nenhuma outra opção, eu não consigo nem conceber que ele esteja sugerindo isso. Melhor eu continuar lendo. Li muito pouco do livro e posso estar sendo injusto com o autor. Quando eu acabar a leitura escrevo mais sobre isso, e, quem sabe, corrijo estes meus erros interpretativos. [1] Vi pela primeira vez este simples e poderoso argumento em uma conferência do Prof. Desidério Murcho, em Natal-RN.
0 Comments
A ciência nos ajuda a encontrar cura para doenças, a erradicar pragas, a construir máquinas maravilhosas, que nos fazem voar, nos levaram à Lua, que nos colocam em contato comunicativo instantâneo com qualquer outra pessoa em qualquer lugar do mundo, através de textos, sons e imagens. A ciência nos informa sobre as origens e desenvolvimento do universo, de nosso planeta, da vida, de nossa constituição biológica e psicológica, nos ajuda a explicar o comportamento do mundo material e até a entender o funcionamento de nossos próprios corpos e mentes. Quando pensamos sobre todas as maravilhas fantásticas que a ciência nos ajudou a conquistar, em tudo o que sabemos e conseguimos fazer por causa dela, quando comparamos nosso entendimento e atuação no mundo com o que tínhamos há algumas centenas de anos, fica muito difícil de entender por que todo este desenvolvimento não nos ajudou a resolver nossos principais problemas. Diferentemente do que sonhou o filósofo Francis Bacon em sua utopia da Nova Atlântida, o desenvolvimento científico não nos levou a um mundo de perfeição, harmonia e bem estar generalizado. Mesmo com tudo o que passamos a saber através da ciência, com toda a ampliação de nossa capacidade de atuação no mundo que a tecnologia científica nos deu, não temos sido capazes de resolver os principais problemas que sempre assolaram a humanidade.
E mais ainda, a mesma ciência que nos ajudou a domesticar a energia nuclear, também nos ajudou a produzir armas capazes de destruir completamente o nosso planeta, muitas vezes até. Os mesmos avanços científicos que desvendam o código genético de nossa espécie, simultaneamente e de modo inextricável, também produzem a possibilidade de segregação e controle do indivíduo através da informação genética. A mesma ciência que compreende cada vez mais a fundo a natureza, contribui para a devastação ambiental do planeta. A mesma ciência que nos ajuda a produzir riqueza, bem-estar e poder, também contribui para a manutenção das desigualdades sociais, propiciando novas formas de controle, dominação e segregação. Mesmo com todo o desenvolvimento científico que conquistamos, vivemos em um mundo onde fome, miséria, ignorância e violência são problemas tão reais e urgentes quanto o eram há 500 anos. A ciência não resolve nossos principais problemas. Por que? Hoje não quero tentar responder nada, mas apenas deixá-lo pensando na pergunta. Recebi estes dias a notícia de que um amigo, colega de trabalho, está gravemente doente e se vê diante da situação de encarar a iminência da própria morte. Difícil e inevitável situação que se impõe a todos nós. Para alguns, para ele, agora, de modo mais palpável e doloroso do que para o resto de nós. Mas a iminência de nossa própria morte está aí. A nossa frente. Em nosso caminho. Qualquer um com mais de 18 anos já iniciou seu declínio biológico. Lento no início, mas já declínio. Decair, então, é a condição básica de nossa existência adulta, e a morte é o ponto final inevitável deste declínio. Sabemos disso, mas há algo em nós que simplesmente nos impossibilita de conceber a nossa própria morte.
Quando penso abstratamente sobre a morte e a ela relaciono seu contrário, o nascimento, e olho para o que a combinação destes dois fenômenos (nascimento-morte) proporciona para a vida, eu entendo, aceito e vejo toda a beleza da morte. Eu a compreendo ao lhe dar uma função que transcende a minha própria existência e a relaciona com a vida em sua totalidade. Nascimento e morte são o que distingue a existência enquanto vida, ativa e autônoma, da existência inanimada, passiva, de mera disponibilidade a forças inexoráveis, que caracteriza os seres inertes. Se vida é atividade, é ação, é resistência ao inexorável, é mudança, é autonomia, então a morte é o que garante esta renovação, adaptação, movimento. Não há nascimento sem morte. Eles até se confundem às vezes, como na reprodução assexuada de seres unicelulares. O exato momento do nascimento das células filhas é o exato momento da morte da célula mãe. Não haveria renovação sem morte e nascimento. Mas não há chegada sem partida. E o novo chega, o novo modifica, o novo altera, adapta e conquista posições antes inatingíveis. O novo também nos inspira cultivo, cuidados, carinho. E quando chega o momento, cedemos nosso lugar ao novo. Abrimo-lhe passagem. Nos retiramos. Não é isso a morte? Não há dúvida de que qualquer um que reconheça beleza na vida, reconhecerá também beleza na morte. Mas esta compreensão e beleza são direcionadas apenas à morte intransitiva, abstrata, sem objeto, pura forma. A morte instanciada, exemplificada, com objeto e substância, esta dói. Dói tanto que a nossa própria morte é simplesmente inconcebível a nós mesmos. Quando penso no que nos faz sofrer vejo que qualquer sofrimento se liga a uma restrição. E qual restrição maior do que a restrição de ser? A morte em primeira pessoa é o puro sofrimento, a máxima restrição, inconcebível. Apenas dor. Mesmo que meu próprio declínio adulto seja meu companheiro já há muitos anos, eu só consigo imaginar a dor de meu amigo nestes difíceis momentos. Mas o que posso lhe oferecer? Qual é o cuidado e o carinho que poderiam amenizar a dor em sua fonte mais pura? Bem, em primeiro lugar eu torço com força por você, meu amigo, e sua luta, e lhe envio meus melhores pensamentos e sentimentos! Força! Juntamente com o desejo e a esperança de que ela não venha, o máximo que posso lhe dar, e lhe dou de todo coração, é a imagem da beleza da morte intransitiva. Sendo você, meu amigo, um professor, um dos melhores que tive a sorte de conhecer, você vem cultivando e cuidando do novo com carinho e destreza. E isto já coloca sua vida no melhor lugar em que ela poderia estar! Sua vida tem, como a de poucos, propiciado florescimento da vida! Bravo! Minha resposta mais honesta a esta pergunta é: não sei. Não sou crente nem ateu porque simplesmente não sei se Deus existe. Há momentos em que me parece óbvio que tudo isto à nossa volta não faz nenhum sentido por si só, que toda nossa capacidade de perceber e raciocinar encerra-se em um ponto de vista particular, parcial e irremediavelmente incompleto. Deve haver algo mais, algo além, algo inatingível. Nestes momentos sou quase crente. Mas este mesmo impulso de reconhecimento de nossa parcialidade e falibilidade também me afasta das religiões. Afinal, as religiões procuram exatamente preencher esta lacuna, completar isto que não se completa. E quando vejo suas respostas, suas regras, suas visões de Deus, da vida, de tudo isso à nossa volta, também as considero parciais, limitadas e incompletas. Não consigo acreditar no que elas dizem e, nestes momentos, sou quase ateu.
Eu sei que muitas vezes julgamos mal o que nos fará felizes ou não. Por exemplo, suponha que eu ganhe um bom dinheiro em um sorteio e na dúvida entre gastá-lo passando férias na Europa ou comprando um carro novo, eu decida pelo carro. Aí, depois de um mês, eu percebo que a única felicidade que o carro me traz é que, sozinho, ao seu volante e preso ao trânsito, passo horas e horas sonhando com a Europa… Neste caso, eu apenas decidi errado sobre o que me faria mais feliz. Mas minha pergunta é outra. Minha pergunta é sobre se é ou não é possível eu ser feliz sem ter ciência de minha própria felicidade, ou ser miseravelmente infeliz e, ao mesmo tempo, acreditar, sentir que sou feliz.
Imagine a seguinte situação: Bento e Capitu conheceram-se, noivaram e casaram. Eles sempre se deram bem, viveram uma vida calma, repleta de realizações pessoais e profissionais, com saúde e estabilidade econômica. Nunca brigaram. Mesmo com o temperamento um tanto controlador de Bento, comum para os homens de sua geração, ele nunca percebeu qualquer motivo para sequer sentir ciúmes de Capitu. Depois de mais de 55 anos de casados, Capitu morre dormindo, sem sofrimentos. Ainda um pouco abalado, mas já resignado, afinal eles tiveram muitos anos muito bons, Bento encontra um baú repleto de cartas que revelam que Capitu, durante mais de 55 anos, manteve um caso extraconjugal com Escobar, o melhor amigo de Bento. As cartas revelam detalhes íntimos dos amantes, e também que todo o amor e afeição que Bento sinceramente julgava receber tanto de sua esposa Capitu quanto de seu amigo Escobar eram apenas uma fria estratégia de ambos para que continuassem próximos um do outro e mantivessem o caso ativo. O golpe foi tão duro que o coração de Bento não aguentou. Ele morreu naquele mesmo dia, não muitas horas após a descoberta dos fatos. Pensemos um pouco na situação de Bento. Ele viveu 80 anos realizado, tendo a sensação da mais serena felicidade. No último dia de sua vida ele obtém notícias que o informam de que as bases segundo as quais ele se julgava feliz eram incorretas. Diante destas novas informações, todos os momentos de sua vida que ele julgava terem sido momentos felizes, perderam o caráter de felicidade. O amor de sua esposa e a afeição de seu amigo, que por anos nutriram seu bem estar, não eram amor nem afeição, mas apenas comportamento interessado e calculado. Bento viveu 80 anos tendo a sensação de ser feliz e algumas horas sentindo-se o mais infeliz dos mortais. Bem, acho que você já sabe qual é a pergunta que vou fazer agora. Esta é a pergunta mais difícil sobre a qual eu já pensei. E não consigo imaginar nenhuma outra mais difícil do que esta. A pergunta é: Afinal, Bento teve ou não uma vida feliz? Eu tenho uma resposta para esta pergunta, mas não vou dizê-la porque eu não sei justificá-la. Minha resposta não é, por isso, filosófica, é apenas o que eu acho. Mas o que eu acho sobre a felicidade de Bento pouco importa. O importante é o que você acha! É claro que todos nós podemos errar. Se você está conseguindo ler estas palavras, você, além de português, deve ter estudado alguma matemática e certamente já errou em algum cálculo. Nós muitas vezes erramos quando fazemos matemática, filosofia, ou mesmo arte, afinal, nem sempre atingimos a nota almejada ou a cor adequada. Mas a própria matemática, ou a própria filosofia, ou a própria arte, poderiam, mesmo se efetuadas competentemente, nos levar ao erro? O que são, afinal de contas, erro e acerto? Pergunto isso por causa das palavras finais do texto anterior, logo abaixo, onde, filosofando, afirmei que “só não haverá mais filosofia quando não houver mais nenhum de nós”. Como podemos saber se o que disse está certo ou errado? Ou, o que é quase a mesma coisa, de onde tiramos estas informações? Sabemos se está chovendo ou não, olhando pela janela. Sabemos que 2+2=4, olhando para nossos dedos. Sabemos que o verde não é uma cor primária, porque conseguimos produzir o verde misturando duas outras cores diferentes. Mas há coisas que nós supomos saber mesmo sem ter um modo tão direto como estes de verificar se estamos certos ou errados. Os matemáticos, por exemplo, dizem que existem infinitos números. Não temos tantos dedos assim para saber disso. Os cientistas dizem que ninguém pode viver 150 anos, mas tudo o que está comprovado é que até hoje ninguém viveu 150 anos. Não seria possível que um de nós, que ainda estamos vivos, seja uma exceção a esta regra? Há sempre uma porção de crença em quase tudo o que supomos saber. Com a filosofia, não é diferente. A grande vantagem da filosofia é que ela explicitamente aceita e estimula a divergência. Não há uma afirmação filosófica sequer sobre a qual haja consenso. Tudo o que um filósofo pode dizer é questionável e deve ser questionado. Questionar, discordar, buscar as justificativas, argumentar. Este é o método da filosofia. Então, minha resposta para a pergunta do título é: SIM. A filosofia pode errar e erra muito. O que eu ainda não descobri é se a filosofia pode, de vez em quando, acertar!
Obviamente é possível imaginar que todo o nosso acervo filosófico possa ser perdido. Todos os livros destruídos, arquivos deletados e memórias esquecidas. Mas será que esta triste circunstância acabaria de uma vez por todas com a filosofia? Novamente, uma analogia com a arte nos ajuda a pensar. O que você acha que aconteceria se todos os vestígios de toda nossa criação artística simplesmente sumissem da noite para o dia? Todos os quadros, CDs, reproduções, arquivos MP3, livros, fotografias, filmes… Sejamos radicais e façamos desaparecer também todas as nossas memórias artísticas. Livros que lemos, poemas, melodias, esculturas, espetáculos… tudo esquecido. Será que a arte desapareceria junto? Eu não acredito. Da mesma forma que a arte não se esgota no conjunto de seus produtos, o mesmo se dá com a filosofia. A filosofia, tanto quanto a arte, está em nós. E não em nossas memórias, mas em nossas possibilidades, naquilo que nos caracteriza como o que somos. A humanidade é artística, tanto quanto é filosófica. Enquanto existirmos seremos atraídos pelo belo e pela especulação racional desinteressada. Então, se tudo fosse perdido, inclusive nossas memórias, simplesmente começaríamos de novo. Só não haverá mais filosofia quando não houver mais nenhum de nós!
OK, mas quer você concorde comigo ou não, há uma pergunta muito importante sobre o que acabei de afirmar: como é que eu sei disso? Ah… Bem… Deixo esta para outro momento :) Se a filosofia é tão inútil quanto a felicidade, o bem, o belo e o amor, então a filosofia deve ter um contrário, afinal, cada um destes imprestáveis tem o seu contrário, que ao invés de nos deleitarem nos assombram: a infelicidade, o mal, o feio e o ódio. Qual então é o contrário da filosofia? Seria a ignorância? Se fosse assim, então filosofia seria conhecimento. Mas eu não acho que filosofia é conhecimento, pelo menos não do tipo que os cientistas pesquisam ou os professores ensinam. Este tipo de conhecimento, diferente da filosofia, é útil, ligado a algum interesse, sempre serve pra alguma coisa. Se filosofia é conhecimento, ela é conhecimento inútil, desinteressado, imprestável, mais próximo daquelas coisas que acabamos por conhecer por passar muitas vezes pelo mesmo caminho, ou por olhar bastante para algo que gostamos. A filosofia seria então um tipo de atividade de cultivo deste conhecimento inútil. Como a arte, que em grande parte é um tipo de atividade de cultivo do belo.
Mas voltando à nossa pergunta, qual seria, então, o contrário da filosofia? Qual é o contrário de cultivar conhecimento desinteressado? Algo, não exato, mas que se aproxima bastante é: destruir ou esconder conhecimento interesseiramente. E isto tem um nome: o contrário da filosofia é ideologia. Para nada. A filosofia é absolutamente e completamente inútil e imprestável.
Muitas vezes já me perguntaram sobre a utilidade da filosofia. Minha resposta é sempre a mesma. A filosofia é inútil. Não serve para nada. Mas ao ser inútil, ao não servir para nada a filosofia está em muito boa companhia. Pense um pouco. Para que serve a beleza? Para que serve o bem? Para que servem a paz, a alegria, o amor... Para que serve a felicidade? Estas coisas não servem para nada. Elas são o fim, a meta de todas as outras coisas que servem, que têm utilidade. Estas coisas, como a filosofia, são inúteis, imprestáveis. Elas não servem, são servidas. O poeta Manoel de Barros escreveu muito sobre "ter orgulho do imprestável". Eu tenho orgulho da filosofia justamente porque ela é tão imprestável quanto a felicidade! |
Blog do Inútil
e do imprestável! Ofensas? Muito ao contrário. Os maiores elogios. Afinal, para que servem a beleza, o bem e a felicidade? Arquivos
March 2023
Categorias |