Apesar da aparente simplicidade esta é, para mim, a principal pergunta de toda a filosofia. Ela vai direto ao ponto que pode distinguir a filosofia de outras atividades ligadas ao conhecimento. E pensar sobre ela também nos ajuda entender por que esta inútil atividade, a filosofia, que quase nunca nos leva a conclusões definitivas, tem persistido entre nós por mais de dois milênios e meio. Vejamos como.
Esta pergunta parece ter uma resposta trivial. Considere uma pedra, por exemplo. Parece que uma pedra é o que é, independentemente de qualquer significado que ela tenha para mim ou para qualquer um. Parece que uma coisa é o que é ainda que, em determinados casos, ela venha a ter algum significado especial, como o diamante de uma aliança de casamento que é uma pedra, mas significa solidez e pureza, ou a própria aliança, que é um anel, mas significa uma união matrimonial, ou a letra ‘A’, que é a forma de certas figuras planas, mas significa um som, um fonema. Mas as coisas quase nunca são tão simples quanto parecem à primeira vista. Pense em um óculos. O que é um óculos? Imagine que um cachorro e uma pessoa tenham cada um 5 minutos para examinar um óculos. O cachorro vai cheirar o óculos e conhecer seu odor, vai lambê-lo, e o conhecerá também pelo paladar, mexerá com ele e escutará os ruídos que ele faz ao ser arrastado, ao cair. Se você colocar o óculos na frente dos olhos do cachorro, ele observará através das lentes e sentirá as alterações que elas provocam em sua visão. Um cachorro tem condições de obter muito mais informações sensoriais sobre a realidade material do óculos do que uma pessoa. Nosso olfato é pior que o deles, nossa audição é pior que a deles, nós provavelmente não lamberíamos o óculos. Então se não fosse um óculos, mas uma pedra o objeto de análise, acho que estaríamos mais inclinados a dizer que o cachorro, após examiná-la, saberia melhor do que a pessoa o que é a pedra. Afinal, se uma pedra é o que é, independentemente de seus significados, suas características materiais esgotam as informações sobre o que ela é, e os órgãos sensoriais mais apurados do cachorro o colocam em vantagem com relação à pessoa. Se a pessoa que a analisou a pedra não for um geólogo e nem utilizar instrumentos especiais, o cachorro certamente saberá melhor do que ela o que a pedra é. Mas e quanto a um óculos? Será que a análise sensorial mais apurada do cachorro lhe dará mais conhecimentos sobre o que é o óculos do que os que nós temos? Há algo fundamental que eu e você sabemos sobre o óculos, que o cachorro jamais saberá. Um cachorro jamais saberá que um óculos é um óculos, por mais estranho que isto pareça. Um cachorro jamais saberá que um óculos serve para a gente enxergar melhor, para corrigir desvios na visão; que precisa ser feito sob medida para cada pessoa, de acordo com instruções precisas. E aqui já podemos entender melhor a complicação de nossa pergunta inicial. Estas características do óculos que o cachorro não consegue perceber, sua função, seu uso, fazem parte daquilo que o óculos é ou do que ele significa? A resposta a esta pergunta não é nada trivial. Se insistirmos em nossa primeira impressão sobre o assunto, a de que ser e significar são coisas totalmente distintas, nossa resposta deveria ser que as características instrumentais, funcionais do óculos, fazem parte de seu significado, e não do que ele é. Afinal elas não estão nele, mas são atribuídas a ele por nós. O que o óculos é deveria depender apenas de suas características objetivas, daquelas que ele tem enquanto um objeto, e não de quais expectativas e usos eu ou qualquer outra pessoa (outro sujeito) temos em relação a ele. Poderíamos então dizer que o ser é dado objetivamente, por aquilo que o cachorro percebe melhor do que nós, e o significado é dado subjetivamente, por aquilo que nós percebemos melhor do que o cachorro e que depende das expectativas e usos que nós sujeitos damos para o objeto, mas que não estão de fato nele. Este é um modo interessante de dividir as coisas, mas novamente, talvez seja simples demais. Afinal de contas, os óculos nem viriam a existir se eles não fossem instrumentos oftalmológicos. Não os produziríamos se eles não cumprissem a função que cumprem. O que seria um óculos se ele não fosse um instrumento oftalmológico? Parece, então, que a própria realidade do óculos, seu ser, aquilo que ele é depende das expectativas subjetivas que temos dele, de suas funções. Um indício deste fato é que diante de um óculos falso, cênico, que não é um instrumento oftalmológico, mas apenas adereço para caracterização de um personagem, não dizemos que é um óculos real. Não é um óculos real, não é um óculos, mas um adereço cênico em forma de óculos. Então parece que o significado subjetivo do óculos, sua função de instrumento oftalmológico, faz parte daquilo que ele é, de seu próprio ser, tornando a diferença entre ser e significar bem menos evidente. Mas você pode ainda não estar totalmente convencido. Além disso, sempre que questionamentos filosóficos colocam em dúvida coisas que você sempre achou saber, é saudável fazer a seguinte pergunta: que diferença isso faz? Em outras palavras, que diferença faz considerar que ser e significar são coisas totalmente distintas ou, ao contrário, que a separação entre o que uma coisa é e o que ela significa não é assim tão evidente? Nossas reflexões parecem estar nos encaminhando para esta segunda alternativa, mas que diferença isso faz? Não será apenas uma questão de vocabulário, de uso das palavras que não faz diferença nenhuma? Bem, algumas vezes pode ser mesmo assim, mas neste caso eu acho que não. E entender até que ponto ser e significar são coisas totalmente distintas ou totalmente misturadas, ou algo entre um extremo ou outro nos ajudará a entender a própria atividade filosófica e sua distinção com relação à ciência, por exemplo. Vamos refletir um pouco mais sobre esta mistura, esta ambiguidade entre os conceitos de ser e significar. Afirmei em outro texto que a pergunta sobre se Bento teve ou não uma vida feliz (link aqui) era a mais difícil sobre a qual eu já havia pensado. E não mudei de ideia. Continuo achando isso, porque decidir sobre a felicidade de Bento envolve uma mistura entre razão, emoção e costumes que torna a tarefa diabolicamente difícil, por mais que tenhamos uma inclinação intuitiva para alguma resposta. A dificuldade não está em decretar se Bento foi feliz ou não, mas em justificar nossa decisão sobre a felicidade dele. Se você não leu ou não se lembra direito da questão, volte ao texto sobre a felicidade (link aqui) e releia-o antes de continuar, caso contrário o próximo parágrafo será um spoiler e você não acompanhará muito bem meu raciocínio. A pergunta sobre a felicidade de Bento exemplifica um aspecto da questão que aqui abordamos, sobre a diferença ou as relações entre ser e significar. Veja, se Maria, por exemplo, acha que Bento teve uma vida feliz e João acha que ele não teve, qual a divergência entre João e Maria? Os fatos sobre a vida e a personalidade de Bento que eles e nós conhecemos são exatamente os mesmos. Se diante exatamente dos mesmos fatos eles continuam divergindo, então a divergência deles é sobre o que a felicidade significa. Para Maria, que julga que Bento teve uma vida feliz, o significado da felicidade não deve estar muito longe da sensação de felicidade. Tendo Bento passado muitos mais momentos de sua vida sentindo-se feliz do que infeliz, Maria julga que ele teve uma vida feliz. Se João, mesmo ciente disso, continua defendendo que Bento teve uma vida infeliz, então ele não pode igualar a felicidade com a sensação de felicidade. A verdadeira felicidade para João deve estar relacionada com a situação real que provoca a sensação de felicidade. Mas as situações que provocaram a sensação de felicidade em Bento não eram totalmente reais ou verdadeiras. Eram falsas. Ele não era amado pela esposa nem estimado pelo amigo, apenas pensava que era. Ele foi enganado a vida inteira. Assim, como as situações que provocaram a sensação de felicidade em Bento não ocorreram de verdade, ele não pode ter sido feliz de verdade, de acordo com o modo como João entende o significado de felicidade. Então vejam, uma decisão sobre o que significa ser feliz, sobre o que a felicidade significa, altera completamente o fato de se Bento foi ou não feliz. E isto é um claro exemplo de como os significados misturam-se com os fatos, com o que é, com o ser. É claro que a felicidade é um caso especial, porque sendo algo imaterial, um tipo de classificação que fazemos sobre as pessoas ou as situações, poderíamos defender que a felicidade só tem significado, e não existência ou realidade. Neste caso, a felicidade ou infelicidade de Bento não seria um fato real do mundo, mas apenas um juízo, uma impressão que sempre poderá variar de pessoa para pessoa. Pode até ser, mas então todos que pensam assim sobre a felicidade deverão pensar da mesma forma sobre a justiça por exemplo. Afinal, tanto quanto a felicidade, a justiça é também algo imaterial, um tipo de classificação que fazemos sobre as pessoas ou as situações. Então ela também não seria real, mas apenas teria significado que poderia variar de pessoa para pessoa. Mas será que faz sentido a justiça ser só isso? Se ela for mesmo só significado passível de variação, você não acha que seria um abuso um juiz condenar alguém a 30 anos de prisão? Se justiça for só isso, como é que deveríamos entender o direito e o conceito de crime? Analogamente à felicidade, não me parece que um crime seria um fato real do mundo, mas apenas uma impressão que sempre poderia variar de pessoa para pessoa. Neste caso, não haveria qualquer objetividade em nossos julgamentos sobre se algo é justo ou injusto. A justiça institucionalizada (o direito) seria, então, apenas uma questão de imposição dos significados que o estado e os poderosos escolhem! Hum... Talvez seja assim mesmo! Ou então, talvez haja um modo de resolvermos estas divergências. Talvez, mesmo para coisas imateriais que são apenas um tipo de classificação, haja algum padrão fixo para seus significados. A questão que esta hipótese levanta é: por que haveria tal padrão? Se estas coisas imateriais que são apenas um tipo de classificação, como a felicidade e a justiça, não têm ser, mas apenas significado, eu não vejo nenhum motivo para haver tal padrão fixo. Acho que só haveria tal padrão se estas coisas, além de significado, tivessem também ser, realidade. Neste caso o significado fixo da felicidade, por exemplo, seria consequência daquilo que a felicidade é, de seu ser. Mas aí teríamos um novo problema: onde está o ser, a realidade da felicidade? Que tipo de pesquisa ou análise deveríamos fazer para encontrarmos o que é a felicidade ou a justiça e, então, sermos capazes de daí extrairmos o padrão que fixaria seus significados? Estas são questões centrais da filosofia e, desde os gregos, os filósofos divergem em suas respostas a elas. A teoria das formas de Platão (seu mundo das ideias) talvez seja a resposta mais famosa. E alguns filósofos contemporâneos continuam concordando com seus principais aspectos. Eles acreditam que há um “lugar abstrato” especial que nossa razão especulativa pode alcançar e encontrar ali de um modo inequívoco as características fundamentais da realidade e o verdadeiro significado das palavras. Outros filósofos, no entanto, com os quais eu tendo a concordar, talvez por terem percebido nos inúmeros debates da história da filosofia a contínua discordância que impera sobre quais seriam os significados destas palavras que falam de coisas imateriais e são apenas um tipo de classificação, como a felicidade e a justiça, negam que estas coisas tenham alguma realidade e defendem que estas palavras têm apenas significados. E mais ainda, eles afirmam que a fonte para os significados destas palavras e de todas as outras é exclusivamente o uso que fazemos delas. Não haveria, para eles, um tribunal superior que apontaria o que a felicidade é e julgaria qual o seu significado correto. O único modo de estudarmos e entendermos as divergências sobre os significados seria estudar o modo como usamos as palavras e quais as consequências destes usos. O filósofo mais conhecido defensor desta abordagem foi Ludwig Wittgenstein. Seja qual for o método que escolhermos para pesquisar o significado das palavras, o de Platão ou o de Wittgenstein, a tarefa de distinguir significado de ser parece fadada ao fracasso. O exemplo mais marcante da mistura entre entre ser e significar que conheço é o valor do dinheiro. Onde está o valor de uma nota de cem reais? Não está em suas características objetivas empiricamente percebidas. Por mais informações sensoriais que um cachorro consiga extrair da nota ele não encontrará ali o seu valor. Os artistas e técnicos da casa da moeda decidem o aspecto da nota e a diferenciam das de outros valores, mas este aspecto e diferenciação não lhes atribui qualquer valor. O valor do dinheiro está exclusivamente em nós, que o usamos, está nas expectativas subjetivas que temos em relação a ele. Se não depositássemos expectativas subjetivas nestes pedacinhos de papel que chamamos de dinheiro quem trocaria um computador, uma barra de ouro ou um prato de comida por eles? Então o valor do dinheiro reside inteiramente em sua função, nas nossas expectativas, em seu significado. No entanto, apesar de residir exclusivamente em seu significado, o valor do dinheiro não é ilusório. É real. Existe. Temos mais razão até para acreditar na existência real do valor do dinheiro, do que na existência da justiça ou da felicidade. Ele é tão real que uma metáfora comum de alguém que ficou louco e perdeu o senso da realidade é “queimar dinheiro”. Se queimar dinheiro é símbolo para loucura e desconexão com a realidade, quando uma nota de cem reais arde há algo mais que papel sendo queimado. Há o seu valor que, portanto, existe. Então apesar de emanar exclusivamente do significado, o valor do dinheiro tem também existência, realidade, ser. Mas se o ser, a realidade do dinheiro e o seu significado são tão misturados assim, como devemos tratar os fatos sobre o dinheiro, os fatos econômicos? Como eles deveriam ser estudados? Como decidimos o que é real, o que ocorre, o que é verdadeiro quando se trata de economia? Uma ciência natural e objetiva não basta, pois ela não nos daria aquilo que é mais fundamental no valor do dinheiro, seu significado, baseado em nossas expectativas subjetivas. E ainda que queiramos objetivar ou naturalizar estas nossas expectativas subjetivas que constituem o valor do dinheiro e definem seu significado, delegando-as a alguma ciência humana, me parece que sempre estará disponível a nós o exercício de uma certa liberdade arbitrária incompatível com as regularidades que qualquer tratamento científico exige. O domínio dos significados não parece ter esta regularidade exigida pela ciência. Ele, diferentemente do que é natural, é suscetível aos nossos caprichos. Para entendermos os fatos econômicos, que incluem de modo fundamental o valor do dinheiro, precisamos, então, também da filosofia. Seja em sua versão platônica, seja em sua versão wittgensteiniana. A economia depende da filosofia na mesma medida que a realidade do mundo econômico depende de seu significado. Aquilo que sabemos sobre o valor do dinheiro depende daquilo que filosoficamente escolhemos para (ou descobrimos sobre) seu significado. O valor do dinheiro é um caso radical, mas o mesmo fenômeno ocorre com todas as coisas, por mais científicas que elas pareçam ser. O que os átomos, os óculos e até as pedras são sempre está misturado em algum grau com o que eles significam e, portanto, seu entendimento nunca estará livre da filosofia. Seja decidindo o que queremos significar com as palavras, seja atingindo regiões abstratas exclusivas à razão especulativa, do que quer que falemos, sobre o que quer que pensemos, a filosofia estará lá, inevitável, conscientemente ou não, abrindo possibilidades e alternativas para entendermos, conhecermos e atuarmos no mundo. Como eu não acredito no mundo platônico das ideias, eu acho que o que nos resta é estudarmos e entendermos o uso que damos às palavras. Só assim saberemos o significado de justiça, de felicidade, e mesmo o valor do dinheiro, o que é um óculos ou todas as possibilidades das pedras. Mas quando algumas pessoas renunciam a esta capacidade de escolher e decidir conjuntamente os significados das palavras, elas estão simplesmente delegando a outros a força e poder que têm para atuar e modificar o mundo. Em geral as pessoas delegam esta tarefa às tradições, sejam elas culturais, religiosas ou mesmo científicas. Mas não precisa ser assim. Nossa capacidade para atuar e mudar o mundo é muito maior do que a primeira vista parece. A única exigência é que façamos isso juntos. O que só eu e mais ninguém acredito é provavlmente loucura, mas o que todos nós acreditamos é muito provavelmente real.
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March 2023
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